29.10.14

The Cantos

A pilhagem de todas as civilizações pelas hordas bárbaras de um homem só. O amontoamento, no mesmo sítio, de todas as ruínas do globo. O refluxo não digerido de mil banquetes pantagruélicos.

27.10.14

Protagonismo

Eu gosto da democracia porque tudo que ela me exige em troca da sensação de protagonismo no drama da redenção cósmica é que eu digite o número certo.

As mortes

A morte como problema a ser vencido (o pecado original, a ressurreição, a reencarnação, a necromancia). A morte como problema a ser aceito (o aproveite enquanto é tempo). A morte como solução que se aguarda (o conforto do nada, o fim das dores). Finalmente, a morte não como problema nem solução, mas como fato natural, de peso igual ao nascimento, nem um pouco digna de choro ou indisposição (tudo se transforma, reorganiza-se).

Retas paralelas

Herman Melville e Walt Whitman nasceram ambos no mesmo ano de 1819, no mesmo estado de Nova Iorque, e de pais da mesma nacionalidade, anglo-holandesa. O primeiro foi de importante família calvinista; o segundo, de uma simples família quaker. Em 1851 Melville publicou Moby Dick, sua principal obra; Whitman publicou a primeira edição de Leaves of Grass em 1855. Melville morreu em setembro de 1891, seis meses antes de Whitman, que morreu em março de 1892. Apesar de tantas proximidades, parece que nunca nem se esbarraram.

22.10.14

O sangue

Poema da colombiana María Mercedes Carranza (1945-2003), tirado de El canto de las moscas (versión de los acontecimientos), livro de 1998, composto de 24 poemas muito breves dedicados cada um a uma região da Colômbia que foi cenário de algum episódio marcante de violência. O tanto de coisas em tão poucos versos: a assonância trivial de “rosas rojas”, do 3º verso, alongada pelas sibilantes “es”/“as” do verso seguinte, o único com 7 sílabas, dividindo o poema em duas partes de três versos com 3 ou 6 sílabas cada, a primeira parte a da ilusão embelezadora (o lugar comum, o verbo “poético”: “rosas rojas esparcidas”), a segunda a do choque do desvendamento (as coisas como elas são: “No son rosas, es la sangre”); o sangue que deixa de correr nas veias pra correr em “otros caminos”, os do rio; rio que é “dulce”, isto é, de águas mais densas que a água pura, graças à viscosidade do sangue...

DABEIBA
El río es dulce aquí
en Dabeiba
y lleva rosas rojas
esparcidas en las aguas.
No son rosas,
es la sangre
que toma otros caminos.

O eco e o terror

Homero, Ilíada, IV, 446-455, trad. Frederido Lourenço:
Quando chegaram ao mesmo sítio para se enfrentarem uns aos outros,
brandiram todos juntos os escudos, as lanças e a fúria de homens
de brônzeas couraças; e os escudos cravados de adornos
embateram uns contra os outros e surgiu um estrépido tremendo.
Então se ouviu o gemido e o grito triunfal dos homens
que matavam e eram mortos. A terra ficou alagada de sangue.
Tal como os rios invernosos se precipitam das montanhas,
atirando juntos o enorme caudal para a embocadura de dois vales,
e das poderosas nascentes vêm lançar as águas num oco desfiladeiro,
e lá longe nas montanhas o pastor chega a ouvir-lhes o estrondo —
assim era o eco e o terror dos que embatiam uns contra os outros.

19.10.14

Peculiaridade

Só mesmo o Brasil pra dar ao mundo essa espécie tão peculiar de artista recluso: o artista recluso que sempre aparece.

18.10.14

A lembrança

Havia dias em que a única razão por que não abandonava os livros pra se fazer motorista de ônibus era a lembrança de que não sabia dirigir. 

O fim

O mundo está pra acabar desde o anoitecer do primeiríssimo dia, que já Adão temeu que fosse último. 

17.10.14

Silêncio perfeito

QUANDO OUVI O ASTRÔNOMO ERUDITO

Quando ouvi o astrônomo erudito;
Quando as provas e as cifras foram dispostas em colunas à minha frente;
Quando me apresentaram mapas e diagramas para os somar, dividir e mensurar;
Quando, sentado, ouvi o astrônomo, no auditório onde ele palestrava sob aplauso;
Logo e sem explicação fiquei cansado e farto;
Até que, me levantando e saindo, caminhei a sós,
Pelo úmido e místico ar da noite, e a intervalos
olhava em perfeito silêncio pras estrelas.

§

WHEN I HEARD THE LEARN'D ASTRONOMER

When I heard the learn’d astronomer;
When the proofs, the figures, were ranged in columns before me;
When I was shown the charts and the diagrams, to add, divide, and measure them;
When I, sitting, heard the astronomer, where he lectured with much applause in the lecture-room,
How soon, unaccountable, I became tired and sick;
Till rising and gliding out, I wander’d off by myself,
In the mystical moist night-air, and from time to time,
Look’d up in perfect silence at the stars.

(Walt Whitman)

16.10.14

Prêmio

Prêmio de pior melhor metáfora da literatura ocidental (pior pelo mau gosto, melhor pela propriedade) para o pré-socrático Empédocles de Agrigento, que, segundo a tradução na qual o li, aparece chamando o mar de o “suor da Terra”.

A quantidade

“Não compensa nem um pouco ir a um show de jazz. A pessoa paga por uma hora de apresentação, durante a qual tem a oportunidade de ouvir — o quê? — três músicas? Um roubo...”

Solução

Buscando esvaziar um recipiente com água já até a metade, não bastará que o deixem apenas de encher. Outra medida indispensável será entorná-lo.

Origem

Sonhei que lembrava a Ilíada a quem reclamava comigo de o samba só falar de abandono e traição. “A literatura ocidental se inaugura com o drama de um corno.”

12.10.14

Equívoco

Estranho equívoco do repertório poético ocidental: as duas estrelas brilhando nos olhos da gente clara feito o dia. 

10.10.14

Injustiça

Se há uma coisa na vida que ele em hipótese alguma admite, é que se cometam injustiças na sua frente, razão pela qual vira rapidamente as costas.