31.12.14

Jano

É possível que este se torne, ao longo da vida, meu poema oficial de ano-novo. Acho que já o compartilhei com esse mesmo propósito em anos anteriores, e volto a pensar nele agora em que mais do que nunca é tempo de olhar, tal qual o Jano do mês que se inicia, para frente e para trás ao mesmo tempo.
VELAS
(Konstantinos Kaváfis, trad. Ísis B. da Fonseca)
Os dias do futuro erguem-se diante de nós
como uma série de pequenas velas acesas —
pequenas velas douradas, quentes e vivas.
Os dias passados ficam atrás,
uma triste fileira de velas apagadas;
as mais próximas ainda exalam fumaça,
velas frias, derretidas e recurvadas.
Não quero vê-las; entristece-me seu aspecto,
e entristece-me lembrar seu primeiro clarão.
Adiante contemplo minhas velas acesas.
Não quero voltar-me para não ver, apavorado,
com que rapidez a sombria fileira se alonga,
com que rapidez se multiplicam as velas apagadas.

Companhia

Os gatos precisam estar o mais possível acompanhados, porque sentem muito a falta de alguém pra ignorar.

29.12.14

Notícia

O ano termina mas com a felicidade de ver uma seleção de epigramas e aforismos meus publicados no segundo volume da Revista Nabuco, no qual fazem modesta companhia a, entre outros, um ensaio muito necessário — de crítica pós-colonial — sobre o desafio que é pensar e escrever desde a América Latina em geral e do Brasil em particular, da lavra de Julio Cabrera, filósofo argentino radicado em Brasília, e um depoimento do mestre Ivo Barroso sobre Antônio Houaiss, outro gigante. O número pode ser comprado aqui e a revista assinada aqui

28.12.14

Dependência

Finalmente desfeita a última forma de dependência entre os homens, que já não precisam dos outros nem pra tirar foto em grupo.

O primeiro samba

O Brasil é cheio de circunstâncias tão maravilhosamente inexplicáveis quanto o fato de a composição reconhecida como o “primeiro samba gravado da história” ser na verdade um maxixe.

26.12.14

Espelinho da propaganda

É de conhecimento geral que os primeiros negócios entre nativos americanos e europeus se deram na base da troca, tanto de simpatias quanto de víveres por toda sorte de pequenos utensílios. Quem, aliás, nunca ouviu referência depreciativa aos índios, que se teriam vendido por meros colares?... Mas, meditando sobre os testemunhos dessas transações, é possível perceber que havia por trás delas mais do que o mero deslumbre pueril com o novo. Jean de Léry, por exemplo, nos faz saber que o interesse dos índios era significativamente utilitário. Eles dispunham-se a conceder o que os europeus solicitavam mas em troca de algo que lhes facilitasse a vida. Isto é, os objetos aceitos como pagamento eram aqueles que faziam melhor aquilo que os índios já faziam com artefatos por acaso menos eficazes. Segundo o francês, os tupinambás tinham as pinças em altíssima conta, e isso porque, como também nos informa, eles mantinham o hábito de arrancar todos os pelos do corpo, mesmo cílios e sobrancelhas. Ora, nada melhor para essa tarefa, então feita com a folha de determinada planta, do que as pinças, por isso muito apreciadas. Mais adiante Léry comenta o valor que os índios davam às facas, de grande ajuda nos frequentes sacrifícios rituais de prisioneiros de guerra: mais uma vez, não é difícil imaginar quão menos trabalhoso retalhar um homem com o auxílio do metal afiado havia se tornado — essa mesma observação podendo ser feita a respeito das espingardas em relação aos arcos e flechas etc. E foi pensando nesse uso conveniente do novo que me pareceu pertinente reavaliar a imagem pejorativa que se faz da parte indígena nesse comércio. Porque os índios não se deixavam guiar pelas novidades em si, nem permitiam que elas criassem necessidades novas e desnecessárias, digamos assim, mas antes se apropriavam das novas ferramentas sempre em função de demandas pré-existentes. Estavam, pois, definitivamente longe de ser os tolos enfeitiçados pelo brilho, os tolos do juízo injusto que fazemos. E nisso talvez tenham exercitado postura mesmo superior à que nós, modernos, apresentamos hoje, — nós sim à mercê de qualquer lançamento, nós sim adquirindo primeiro pra buscar depois alguma utilidade, nós sim entregues a qualquer espelhinho da propaganda e do marketing.

25.12.14

A imaginação

A imaginação consiste em expulsar da realidade vários seres incompletos para, com o auxílio das forças mágicas e subversivas do desejo, trazê-los de volta sob a forma de uma presença inteiramente satisfatória. É isso então o inextinguível real incriado.

(René Char)

Madeira

Os primeiros europeus a entrarem em contato com os índios não podiam mesmo adivinhar o que afinal fosse uma mandioca, razão pela qual depois voltaram pra casa espalhando que a gente por aqui chegava ao ponto de comer madeira ralada.

24.12.14

Alegoria

“Uma tormenta é menos temida em alto-mar do que próximo à costa.” — Observação meramente informativa de um relato quinhentista sobre a travessia do Atlântico implorando pra servir de alegoria.

A estrada

Álvaro de Campos: “o Destino a conduzir a carroça de tudo na estrada de nada.”

Contradição fundamental

Ninguém terá mais motivos para se queixar da vida, que afinal é sombra que passa, do que aqueles com os quais ela for mais extraordinariamente generosa; do que aqueles para os quais ela afinal seja o mais próximo possível de um paraíso, se bem que temporário, ou o mais valioso dos tesouros, a ser devolvido porém em dia que aliás só sabemos que chega sem anúncio. Dia esse — tão certo quanto inesperado, tão inevitável quanto imprevisível — em função do qual, quanto melhor for a vida de alguém, mais dolorosa necessariamente ela será. 

23.12.14

Solução

Estamos sempre recorrendo a ideários político-religiosos os mais distantes talvez porque o conhecimento livresco ou virtual ou quando muito turístico nos impeçam, providencialmente, a vivência íntima e própria da multidão de problemas colaterais inerentes a toda e qualquer solução. O que me permite supor que, se pudéssemos saber de tudo, não ousaríamos ser coisa alguma.

12.12.14

Roubo

A vez na vida que depois fiquei me sentindo mais roubado foi quando um sujeito com trejeitos de vigarista me abordou na rua pra contar de uma doença inventada de uma filha que não existia, e fingiu de forma muito mal fingida um choro que não chegava nunca até os olhos, e ainda conseguiu ao fim do papelão — até hoje me pergunto como — que eu lhe oferecesse comovido uns trocados que eu ademais sabia que me fariam falta.

Ainda

Não basta saber o que eles sabem: é preciso ainda desconhecer o que eles desconhecem.

Estabelecimento

A vida é um breve e rápido intervalo de tempo durante o qual nos dedicamos a estabelecer o que é melhor pros outros.

Civilidade

Mesmo depois dos problemas que tivemos, nunca deixou de me apertar a mão com firmeza, se bem que agora a imaginando meu pescoço. 

11.12.14

22.11.14

Tudo

Não fosse tudo
Como uma criança que a fingir sobe
Uns degraus que pintou no chão...

(Pessoa)

A vida

A vida é assim, Senhor?
Desabam mesmo
a pele do rosto e os sonhos?

(Adélia Prado)

Água

Há mil potes
para uma água
imutável.

(Nauro Machado)

A sorte

Renard: “Nunca tive a sorte nem mesmo de perder um trem que depois se acidentasse.”

Um monstro

Um monstro de três cabeças e dez braços. Enquanto uma diz “Sim!”, outra diz “Não!”, outra “Talvez”. Enquanto oito mãos matam e roubam, duas cuidam, consolam, se lamentam e denunciam.

19.11.14

Ben Sirac

Do livro Sabedoria de Ben Sirac, do séc. II, em trad. de Benjamin Carreira de Oliveira:
Enorme dificuldade foi criada para todos os homens,
pesado jugo para os filhos de Adão,
desde o dia em que saíram do ventre materno,
até o dia em que voltarem para a mãe comum.
O objeto de seus pensamentos, o temor de seu coração,
é a espera angustiosa do dia da morte.
Desde o que está sentado no trono, na glória,
até o miserável sentado na terra e na cinza,
desdo o que traz a púrpura e a coroa,
até o que se veste com linho cru,
não é senão furor, inveja, perturbação, agitação,
medo da morte, ressentimento, lutas.
E na hora do repouso, no leito,
o sono da noite apenas muda as preocupações:
apenas iniciado o repouso,
imediatamente, ao dormir, como em pleno dia,
ele é agitado por pesadelos,
como quem fugiu da linha de batalha.
No momento de salvar-se acorda,
admira-se de que nada havia para temer.
Assim sucede com toda criatura, do homem ao animal:
a morte, o sangue, a luta e a espada,
a miséria, a fome, a tribulação, a calamidade.
E ainda:
Como as roupas, toda carne vai envelhecendo,
porque a morte é lei eterna.
Como folhagem verdejante em árvore frondosa
tanto cai como brota,
assim a geração de carne e sangue:
esta morre, aquela nasce.
Toda obra corruptível perece
e aquele que a fez irá com ela.

Mudança

Muito surpreso porque já entre os deuses greco-romanos havia mudança de sexo. Talvez ainda não tenha chegado a ler nem uma dúzia de mitos entre as se não me engano duas centenas deles costurados por Ovídio em suas Metamorfoses, e já conto dois casos. Um deles, o do adivinho Tirésias, que foi mulher durante “sete outonos”. O outro, o de uma mulher que, depois de violentada por Netuno, pede ao deus como desagravo que lhe concedesse o favor de nunca mais correr o risco de passar por aquilo. Como? Virando homem. E virou. De Cenide passou a assinar Ceneu, adquirindo posteriormente fama de guerreiro invulnerável.

14.11.14

Ideal

Vivemos num mundo tão distante do ideal, que pra alcançá-lo só mesmo de avião. 

8.11.14

Briga

Ninguém discorda que já tudo deu errado. A única briga é decidir em que continuar insistindo.

5.11.14

Arte e realidade

Foucault: “A descrição não é reprodução, é decifração.”

Cintio Vitier, poeta cubano: “el espejo no copia al reflejar/ (el cuarto solitario/ esplende en otro tiempo fabuloso,/ el hombre que se asoma no eres tú/ sino tu víctima o tu juez)”.

A primeira

O mundo condescende com toda e qualquer forma de reação. A coisa mais importante pra quem almeja ter as más ações legitimadas é convencer de que se trata de simples reações em sentido exatamente oposto. Conseguido isso, estão abertas todas as possibilidades, apagados todos os limites. Tudo na vida se resume a determinar quem fez a merda primeiro, porque depois que se estabelece quem fez a primeira merda, estão absolutamente desculpadas todas as seguintes.

3.11.14

As cordas

Li Ye, poeta chinesa da Dinastia Tang (618-905 d.C.), trad. Ricardo Portugal e Tan Xiao:
CANTO DE SAUDADE
Profundo, dizem do mar, suas águas
tão mais ao fundo chega a saudade
Mar sem margens, larga a sua praia
e mais longe alcança meu sentimento
Tomo o alaúde, subo as escadas
só no terraço, com a lua cheia
e esta canção que diz: estou triste
toco e arrebento as cordas, as tripas

Passadismo

Ezra Pound, Canto XV:
and the laudatores temporis acti
claiming that the shit used to be blacker and richer
Ou, na tradução de Grünewald:
e os laudatores temporis acti
a reclamar que a merda já fora mais escura e fértil

Miseráveis

É 15 de julho de 1949, e Camus está no carro do poeta Augusto Frederico Schmidt, então uma grande referência nas letras brasileiras apesar de hoje completamente esquecido, — Schmidt que havia cometido a grande infâmia de enriquecer como empresário, algo indigno de um vocacionado pelas Musas, sobretudo por Musas como as dele, espirituais, místicas, bíblicas, francesas, católicas: foi dono de uma prosaica rede de supermercados, entre outros empreendimentos. Mas, como eu ia dizendo, é 15 de julho de 1949, e Camus está no carro do poeta e empresário Augusto Frederico Schmidt, e nos conta:
No automóvel, peço que não me levem a um restaurante de luxo. E o poeta emerge de seus 150 quilos e me diz, com o dedo em riste: “Não há luxo no Brasil. Somos pobres, miseráveis”, dando tapinhas afetuosos no ombro do motorista engalanado que dirige seu enorme Chrysler.
(Além de judeu e católico, poeta e empresário bem-sucedido, místico e obeso, Augusto Frederico Schmidt foi presidente do Botafogo. Que biografia.)

29.10.14

The Cantos

A pilhagem de todas as civilizações pelas hordas bárbaras de um homem só. O amontoamento, no mesmo sítio, de todas as ruínas do globo. O refluxo não digerido de mil banquetes pantagruélicos.

27.10.14

Protagonismo

Eu gosto da democracia porque tudo que ela me exige em troca da sensação de protagonismo no drama da redenção cósmica é que eu digite o número certo.

As mortes

A morte como problema a ser vencido (o pecado original, a ressurreição, a reencarnação, a necromancia). A morte como problema a ser aceito (o aproveite enquanto é tempo). A morte como solução que se aguarda (o conforto do nada, o fim das dores). Finalmente, a morte não como problema nem solução, mas como fato natural, de peso igual ao nascimento, nem um pouco digna de choro ou indisposição (tudo se transforma, reorganiza-se).

Retas paralelas

Herman Melville e Walt Whitman nasceram ambos no mesmo ano de 1819, no mesmo estado de Nova Iorque, e de pais da mesma nacionalidade, anglo-holandesa. O primeiro foi de importante família calvinista; o segundo, de uma simples família quaker. Em 1851 Melville publicou Moby Dick, sua principal obra; Whitman publicou a primeira edição de Leaves of Grass em 1855. Melville morreu em setembro de 1891, seis meses antes de Whitman, que morreu em março de 1892. Apesar de tantas proximidades, parece que nunca nem se esbarraram.

22.10.14

O sangue

Poema da colombiana María Mercedes Carranza (1945-2003), tirado de El canto de las moscas (versión de los acontecimientos), livro de 1998, composto de 24 poemas muito breves dedicados cada um a uma região da Colômbia que foi cenário de algum episódio marcante de violência. O tanto de coisas em tão poucos versos: a assonância trivial de “rosas rojas”, do 3º verso, alongada pelas sibilantes “es”/“as” do verso seguinte, o único com 7 sílabas, dividindo o poema em duas partes de três versos com 3 ou 6 sílabas cada, a primeira parte a da ilusão embelezadora (o lugar comum, o verbo “poético”: “rosas rojas esparcidas”), a segunda a do choque do desvendamento (as coisas como elas são: “No son rosas, es la sangre”); o sangue que deixa de correr nas veias pra correr em “otros caminos”, os do rio; rio que é “dulce”, isto é, de águas mais densas que a água pura, graças à viscosidade do sangue...

DABEIBA
El río es dulce aquí
en Dabeiba
y lleva rosas rojas
esparcidas en las aguas.
No son rosas,
es la sangre
que toma otros caminos.

O eco e o terror

Homero, Ilíada, IV, 446-455, trad. Frederido Lourenço:
Quando chegaram ao mesmo sítio para se enfrentarem uns aos outros,
brandiram todos juntos os escudos, as lanças e a fúria de homens
de brônzeas couraças; e os escudos cravados de adornos
embateram uns contra os outros e surgiu um estrépido tremendo.
Então se ouviu o gemido e o grito triunfal dos homens
que matavam e eram mortos. A terra ficou alagada de sangue.
Tal como os rios invernosos se precipitam das montanhas,
atirando juntos o enorme caudal para a embocadura de dois vales,
e das poderosas nascentes vêm lançar as águas num oco desfiladeiro,
e lá longe nas montanhas o pastor chega a ouvir-lhes o estrondo —
assim era o eco e o terror dos que embatiam uns contra os outros.

19.10.14

Peculiaridade

Só mesmo o Brasil pra dar ao mundo essa espécie tão peculiar de artista recluso: o artista recluso que sempre aparece.

18.10.14

A lembrança

Havia dias em que a única razão por que não abandonava os livros pra se fazer motorista de ônibus era a lembrança de que não sabia dirigir. 

O fim

O mundo está pra acabar desde o anoitecer do primeiríssimo dia, que já Adão temeu que fosse último. 

17.10.14

Silêncio perfeito

QUANDO OUVI O ASTRÔNOMO ERUDITO

Quando ouvi o astrônomo erudito;
Quando as provas e as cifras foram dispostas em colunas à minha frente;
Quando me apresentaram mapas e diagramas para os somar, dividir e mensurar;
Quando, sentado, ouvi o astrônomo, no auditório onde ele palestrava sob aplauso;
Logo e sem explicação fiquei cansado e farto;
Até que, me levantando e saindo, caminhei a sós,
Pelo úmido e místico ar da noite, e a intervalos
olhava em perfeito silêncio pras estrelas.

§

WHEN I HEARD THE LEARN'D ASTRONOMER

When I heard the learn’d astronomer;
When the proofs, the figures, were ranged in columns before me;
When I was shown the charts and the diagrams, to add, divide, and measure them;
When I, sitting, heard the astronomer, where he lectured with much applause in the lecture-room,
How soon, unaccountable, I became tired and sick;
Till rising and gliding out, I wander’d off by myself,
In the mystical moist night-air, and from time to time,
Look’d up in perfect silence at the stars.

(Walt Whitman)

16.10.14

Prêmio

Prêmio de pior melhor metáfora da literatura ocidental (pior pelo mau gosto, melhor pela propriedade) para o pré-socrático Empédocles de Agrigento, que, segundo a tradução na qual o li, aparece chamando o mar de o “suor da Terra”.

A quantidade

“Não compensa nem um pouco ir a um show de jazz. A pessoa paga por uma hora de apresentação, durante a qual tem a oportunidade de ouvir — o quê? — três músicas? Um roubo...”

Solução

Buscando esvaziar um recipiente com água já até a metade, não bastará que o deixem apenas de encher. Outra medida indispensável será entorná-lo.

Origem

Sonhei que lembrava a Ilíada a quem reclamava comigo de o samba só falar de abandono e traição. “A literatura ocidental se inaugura com o drama de um corno.”

12.10.14

Equívoco

Estranho equívoco do repertório poético ocidental: as duas estrelas brilhando nos olhos da gente clara feito o dia. 

10.10.14

Injustiça

Se há uma coisa na vida que ele em hipótese alguma admite, é que se cometam injustiças na sua frente, razão pela qual vira rapidamente as costas.

29.9.14

Os melhores

Todo o problema norte-americano com o futebol se resume ao fato de que só pode haver algo de fundamentalmente muito equivocado com um esporte no qual eles não conseguem ser os melhores.

Precursor

Há um pseudoepígrafo chamado Livro dos Segredos de Enoque, ou Segundo Livro de Enoque, ou ainda Enoque Eslavo — já que o único manuscrito que existia era em tradução para o eslavo, até que se acharam fragmentos dele em copta —, uma grande loucura apocalíptica que busca lançar luz sobre episódios canônicos mais enigmáticos, como por exemplo o envolvendo a impiedade dos nefilim, entre outros. Ninguém sabe ao certo quando foi escrito — século I é a data mais provável —, nem a língua — provavelmente em grego —, nem se de autoria judaica ou cristã — possivelmente judaica.

Mas isso tudo apenas pra dizer que fui folheá-lo outro dia e, de cara, duas coisas me chamaram a atenção:

— o livro começa no mesmíssimo e tão conhecido clima kafkiano, com Enoque acordando de uma incômoda noite de sono e enxergando ao pé da cama dois homens — anjos de aspecto terrível — que o comunicam a intimação divina para uma visita aos céus;

— e o mais surpreendente: Enoque acompanha os tais anjos indo de céu em céu: 1º céu, 2º céu, 3º céu, 4º céu, e assim por diante, até o 7º céu, se não me engano. E depois conta o que viu em cada círculo: anjos, arcanjos, o trono de Deus... Sim, sim. Exatamente a viagem que Dante, mil e duzentos anos depois, vai refazer.

28.9.14

O pedido

Eu era capaz de jurar que somente pessoas vestidas como destaque de carro alegórico estavam autorizadas a chegar a um balcão de lanchonete e pedir um copo de morango com amora batidos na água de coco. Mas parece que não.

25.9.14

Nosso

Segundo o senhor Antônio Cândido, a literatura brasileira é, no conjunto, um Chevette caindo aos pedaços que, se é verdade que não vale nada, pelo menos é nosso.

20.9.14

Parte da realidade

¿Podemos hoy imaginar el mundo sin Don Quijote? Cuesta mucho. ¿Sin Hamlet? Cuesta mucho. Sin embargo, hubo una época en que no existían. Hoy ellos forman parte de la realidad porque fueron imaginados; lo que se imagina se convierte entonces en parte de la realidad indisoluble y ya no puedes entender la realidad sin lo que imaginó el escritor.

(Carlos Fuentes)

Desimportância

Carlos Fuentes, escritor mexicano falecido não faz muito, é autor de um ensaio belíssimo chamado, vejam vocês a consideração, “Machado de La Mancha”. Nunca o li, mas soube que nele Fuentes chama de milagre pra cima ao nosso Machado — um herdeiro solitário de Cervantes em pleno realismo romântico e naturalista oitocentista e, não bastasse isso, ainda por cima no Brasil, esse grande cu do mundo.

Acontece que Fuentes foi muito amigo de Milan Kundera, compartilhando com este a mesma concepção alternativa de romance. Se conheceram primeiro ainda na República Tcheca, quando Fuentes foi até Praga com García Márquez e Cortázar só pra conhecê-lo. E depois que Kundera se exilou na França, passaram a se frequentar com regularidade, já que Fuentes era embaixador do México em Paris justo naquele período, anos 60 ou 70, nem sei.

E se relembro esses dois fatos aparentemente sem relação é apenas porque de repente fiquei imaginando Fuentes falando pra Kundera sobre Machado, um autor que este certamente teria colocado em seu panteão, assinalando-o como precursor junto de Sterne, Diderot, Musil, Broch. E fiquei lembrando o que o próprio Kundera diz sobre o isolamento das línguas periféricas. Segundo ele, qual seria hoje a importância mundial de Kafka, tivesse este escrito em tcheco? Nós, infelizmente, sabemos a resposta.

A nossa e a deles

Entre a nossa ociosidade e a deles, há páginas de diferença.

14.9.14

A outra palavra

Hoy, al leer en un periódico una noticia sobre no sé qué película, tropecé con esta frase: el hombre no es un pájaro. Y pensé: decir que el hombre no es un pájaro es decir algo que por sabido debe callarse. Pero decir que un hombre es un pájaro es un lugar común. Entonces… entonces el poeta debe encontrar la otra palabra, la palabra no dicha y que los puntos suspensivos de “entonces” designan como silencio. Así, luche con el silencio.
 
(Octavio Paz, em carta de 23 de abril de 1967, ao também poeta Pere Gimferrer.)

10.9.14

Música

É incrível como todos os deuses do mundo ensejam boa música, mesmo os verdadeiros. 

7.9.14

Aplicativo

Hoje em dia já está quase tão difícil tomar um táxi sem o auxílio de um aplicativo pra celular quanto manter uma conversa.

Unanimidade

O único desacordo entre os homens é quanto ao que afinal justifica a violência.

6.9.14

Consciência

É preciso que as pessoas se conscientizem de que já são muitas as câmeras espalhadas para que se continue possível ser humano impunemente.

5.9.14

A invenção da barbárie

O mundo está terminantemente proibido de tudo quanto a Europa se cansa. 

Perspectiva

Os europeus que conquistaram as Américas e as civilizaram: colonizadores. Os mouros que civilizaram a Península depois de a conquistarem: invasores. 

Reconquista, o nome dado à expulsão dos colonos mouros, depois de quase oitocentos anos de presença na Europa. Depois de míseros quinhentos anos nas Américas, alguma chance de retomada indígena junto ao invasor europeu? 

2.9.14

Oliverio Girondo II

NOTURNO

Frescor dos vidros quando se apoia a testa na janela. Luzes tresnoitadas que ao serem apagadas nos deixam ainda mais sós. Teia de aranha que os arames tecem sobre os terraços. Trote oco dos pangarés que passam e nos emocionam sem razão.
O que nos faz recordar o uivo dos gatos no céu, e qual será a intenção dos papéis que se arrastam pelos pátios vazios?
Hora em que os velhos móveis aproveitam para sacar as mentiras, e em que os encanamentos têm seus gritos estrangulados, como se asfixiassem dentro das paredes.
Às vezes se pensa, quando se vira a chave da eletricidade, no espanto que as sombras sentirão, e gostaríamos de avisar a elas, para que tivessem tempo de encolher-se nos cantos. E às vezes as cruzes dos postes telefônicos sobre os terraços têm algo de sinistro, e gostaríamos de roçar-nos às paredes como um gato ou um ladrão.
Noites nas quais desejaríamos que nos passassem a mão pelas costas, e nas quais subitamente se compreende que não há ternura comparável à de acariciar algo que dorme.
Silêncio! – grilo afônico que nos entra pelo ouvido. Canto das torneiras mal fechadas! – único grilo que convém à cidade.

Buenos Aires, novembro, 1921.

Oliverio Girondo I

PEDESTRE

No fundo da rua, um prédio público aspira o mau cheiro da cidade.
As sombras quebram a espinha nos umbrais, se recostam para fornicar na calçada.
Com um braço preso à parede, um lampião apagado tem a visão convexa da gente que passa de automóvel.
Os olhares dos transeuntes sujam as coisas que se exibem nas vitrines, afinam as pernas que pendem sob a capota das carruagens.
Junto ao meio-fio, uma banca acaba de engolir uma mulher.
Passa: uma inglesa idêntica a um lampião. Um bonde que é um colégio sobre rodas. Um cachorro fracassado, com olhos de prostituta que nos dá vergonha de ver e deixar passar.
De repente: o guarda na esquina detém com um golpe de batuta todos os estremecimentos da cidade para que se ouça, em um só sussurro, o sussurro de todos os seios que se roçam.

Buenos Aires, agosto, 1920.

22.8.14

Métodos

A grande esperança é de que a ciência evolua até o ponto de alcançar métodos de eugenia capazes finalmente de acabar com o risco de nascerem os eugenistas. 

21.8.14

O Deus e o céu dos espanhóis

Palavras atribuídas ao cacique Hatuey, a propósito dos primeiros colonizadores, por Frei Bartolomeu de las Casas:
Sabeis vós que os espanhóis vêm por aqui e de que maneira trataram a tais e tais tribos e por que assim o fazem? Responderam-lhe que não, senão que eram de sua própria natureza maus e cruéis. Ele então lhes disse: Não é só por isso, mas também porque têm um Deus que adoram. E, olhando junto de si uma cesta cheia de ouro e de joias, disse: Eis aqui o Deus dos espanhóis.
Outro episódio, envolvendo o mesmo Hatuey:
Este senhor e cacique fugia sempre aos espanhóis e se defendia contra eles toda vez que os encontrava. Por fim, foi preso com toda a sua gente e queimado vivo. E como estava atado ao tronco, um religioso de São Francisco (homem santo) lhe disse algumas cousas de Deus e de nossa Fé, que lhe pudessem ser úteis, no pequeno espaço de tempo que os carrascos lhe davam. Se ele quisesse crer no que lhe dizia, iria para o céu onde está a glória e o repouso eterno, e se não acreditasse iria para o inferno, a fim de ser perpetuamente atormentado. Esse cacique, após ter pensado algum tempo, perguntou ao religioso se os espanhóis iam para o céu; o religioso respondeu que sim, desde que fossem bons. O cacique disse incontinenti, sem mais pensar, que não queria absolutamente ir para o céu; queria ir para o inferno a fim de não se encontrar no lugar em que tal gente se encontrasse.

14.8.14

Fenômeno

Eu gostaria de chamar a atenção de vocês para um fenômeno peculiaríssimo, talvez nunca antes visto na história, o qual somente nós, com toda a clareza mental que nos é própria, poderíamos proporcionar:

No Brasil, ninguém faz um só ataque à Igreja Católica, sem que de imediato apareça um protestante para o refutar.

13.8.14

Segredo

O segredo está em dançar conforme a música, alegando porém ter escolhido o repertório.

This here

Now we're about to play a new composition, by our pianist Bobby Timmons. This one is a jazz waltz, however it has all sorts of properties. It's simultaneously a shout and a chant, depending upon whether you know anything about the roots of church music, and all that kinda stuff — meaning soul church music — I don't mean, uh, Bach chorales and so, that's different. You know what I mean? This is SOUL, you know what I mean? You know what I mean? Allright.

7.8.14

Fases

Na Ilíada, os homens desabam mortos feito “árvores cortadas”. E no chão permanecem, segundo o Corão, como “troncos ocos”.

6.8.14

Afinidade

A única divergência que um grupo de pessoas não supera, hoje, é a divergência a respeito de que outros grupos se precisa rir.

5.8.14

Alfonso Reyes

Poeta e ensaísta de ampla cultura, o mexicano Alfonso Reyes (1889-1959) foi também diplomata, em função do que teve uma ligação muito estreita com o Brasil, mais especificamente com o Rio de Janeiro, onde viveu como embaixador durante a década de 30. Apesar de ter sido — diz-se — um dos grandes divulgadores da cultura brasileira no México, e ter sido interlocutor de alguns dos principais escritores brasileiros de então, como Manuel Bandeira e Cecília Meireles, a obra de Reyes é quase absolutamente desconhecida entre nós, salvo engano meu nunca tendo sido traduzida. Como calhei de achar um volume da Fondo de Cultura Económica com sua Obra poética, ficam aqui três poemas dele à guisa de apresentação.

COM A VERDADE SABIDA E BOA FÉ GUARDADA

Para ser sincero, não aguento ninguém,
e só junto ao mar é que respiro.
Aí lhes deixo meus trajes, o que chamam de “roupas
de ir à missa”,
minha coleção de cachimbos, de bengalas,
de canetas-tinteiros, de lâminas Gillette,
meu rádio, os telefones que funcionam,
o aluguel pago,
a luz, o gás, os livros, as visitas,
os vizinhos; deixo o automóvel;
tudo lhes deixo, em troca
de uma poltrona a estibordo
de onde cante o mar e bata o sol.
Logo me arranjarei: me deixem em paz.
Sei muito bem o que quero quando estou a sós.
Esqueçam-se de mim, que eu me entendo
enquanto deixam de pedir-me a alma
de empréstimo para isto e para aquilo.
Já estou farto!
Deixem-me dormido sobre o mar!

A VERDAD SABIDA Y BUENA FE GUARDADA

Para decir verdad, no aguanto a nadie,
y yo sólo respiro junto al mar.
Les dejo ahí mis trajes, lo que llaman "trapitos
de cristianar",
mi colección de pipas, de bastones,
de plumas-fuente, de láminas Gillette,
mi radio, los teléfonos en marcha,
el alquiler pagado,
la luz, el gas, los libros, las visitas,
los vecinos; les dejo el automóvil;
todo los dejo, a cambio
de una butaca al estribor
a donde cante el mar y pegue el sol.
Ya yo me arreglaré: déjenme en paz.
Sé muy bien lo que quiero cuando me quedo solo.
Olvídense de mí, que yo me entiendo
en cuanto dejan de pedirme el alma
prestada para esto y para estotro.
¡Y ya me tienem harto,
Y déjenme dormido sobre el mar!

*
DESCONCERTO DO POETA
Atônito, o poeta surgiu desde seus mares,
coberto de algas;
mas a fosforescência que levava nos olhos
não o deixava ver.
Como em seu reino aquático,
o ar lhe grumava a garganta,
e queria nadar pelo espaço,
aos tropeções.
A multidão o rodeou aos gritos,
e acreditou ensurdecer.
De ásperas grinaldas o coroaram,
e acreditou que lhe deitavam cadeias de louros,
cadeias nas têmporas, as piores cadeias,
pois já nada permitem compreender.
E disse à Sereia:
— Fujamos rapidamente para onde não nos vejam
(a Sereia era sua mulher);
voltemos às grutas de âmbar cristalino
e ao mar cor de vinho
que espairece ao amanhecer
quando, ao frescor, borbulha o peixe,
e me arranque estas tranças de louros
que me arranham a pele.

DESCONCIERTO DEL POETA

Atónito, el poeta surgió desde suas mares,
enredado de algas;
mas la fosforescencia que traía en los ojos
no lo dejaba ver.

Hecho a sua reino acuático,
el aire le agrumaba la garganta,
y quería nadar por el espacio,
dando sólo traspiés.

Lo rodeó la multitud a gritos,
y creyó ensordecer.
Lo coronaron de guirnaldas ásperas,
y creyó que le echaban cadenas de laurel,
cadenas en las sienes, las peores cadenas,
que ya nada dejan entender.

Y dijo a la Sirena:
— Huyamos prontamente a donde no nos vean
(la Sirena era su mujer);
tornemos a las grutas de ámbar cristalino
y al mar color de vino
que se solaza en los amaneceres
cuando, a la fresca, burbujea el pez,
y arráncame estas trenzas de laureles
que me arañan la piel.
SUICÍDIOS
A que triunfo, a que derrota
carregava a espingarda entre suspiros,
e apertando o gatilho com o dedo do pé,
cerimonial, entrava no suicídio?
Com que esperança, com que desesperança
pendurava da viga
o cacho de ossos e de carnes,
com um palmo de língua como único adeus?
Que alquimia diluída
de pó vermelho e taça fumegante
lançou em suas entranhas
as alígeras ondas da morte?
Honesto comerciante de Romeo:
tu lhe deste a beberagem;
tu a corda, baú do avô marinheiro;
saco dos esportes de verão,
tu a pólvora, tu a munição.
Tudo estava previsto, até o anzol
do insaciável deus que pesca as criaturas;
até a gargalhada com que se foi do mundo,
ó sacramento,
deixando-nos a burla de um fantoche,
para arrastá-lo em carro de triunfo, lentamente,
com mãos delirantes e coroas.

SUICIDIOS

¿Para qué triunfo, para qué derota
cargaba la escopeta entre suspiros,
y apretando el gatillo con el dedo del pie,
ceremonial, entraba en el suicidio?

¿A qué esperanza, a qué desesperanza
colgaba de la viga
los racimos de huesos y de carnes,
con um palmo de lengua como único adiós?

¿Qué alquimia diluída
de rojos polvos e humeante copa
echó por sus entrañas
las alígeras ondas de la muerte?

Honesto comerciante de Romeo:
tú le diste la pócima;
tú la cuerda, baúl del abuelo marino;
hato de los deportes veraniegos,
tú la pólvora, tú los perdigones.

Todo estava previsto, hasta el anzuelo
del insasiable dios que pesca las criaturas;
hasta la carcajada con que se fué del mundo,
oh sacramento,
dejándonos la burla de un pelele,
para arrastrarlo en carro de triunfo, lentamente,
con manos delirantes y coronas.

4.8.14

Encontro

O Ocidente nasce quando o povo que despreza os que não falam sua língua encontra o povo que despreza os que adoram outros deuses. 

31.7.14

Sobra

Um dos argumentos de Jorge Luis Borges contra a “cor local” em literatura, a já famosa alegação de inexistência de camelos no Alcorão: — uma prova de que o Alcorão, livro árabe por excelência, foi realmente escrito por árabes: a completa ausência de camelos, os quais, se nele existissem, constituiriam indício de que o livro fora escrito antes por turistas querendo se passar por locais, ou falsários, ou nacionalistas. Uma observação que Borges afirma ter encontrado em Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon, — muito embora eu duvide que este a tenha feito, uma vez que não apenas não falta camelo no Alcorão, como pode-se dizer que, em se tratando de um livro sobre o Dia do Juízo, até sobra.

30.7.14

“Igual a todos”

Também eu sou homem mortal, igual a todos,
filho do primeiro que a terra modelou,
cinzelado em carne, no ventre de uma mãe,
onde, por dez meses, no sangue me solidifiquei,
de viril semente e do prazer, companheiro do sono.
Ao nascer, também eu respirei o ar comum.
E, ao cair na terra que a todos recebe igualmente,
estreei minha voz chorando, igual a todos.
Criaram-me com mimo, entre cueiros.
Nenhum rei começou de outra maneira;
idêntica é a entrada de todos na vida, e a saída.

Livro da Sabedoria, 7:1-6.

Ordem

Eu sinceramente já não sei até que ponto uma ordem tão inconveniente a parcela tão majoritária da população vale mais do que a desordem. Quer dizer, a desordem incomoda quem não é incomodado pela ordem. Mas há muito mais gente a quem a mera ordem é um estorvo. E aqui me lembro da admiração de Montaigne ante o raciocínio dos tupinambás, os quais, ao verem na França tantos miseráveis vivendo ao pé de palácios, se espantaram de que aceitassem aquela condição e não se juntassem e ateassem fogo na propriedade daqueles que não se dispunham a compartilhar o que tinham.

27.7.14

E agora mais outra

Com a contribuição das redes sociais, as incoerências se tornaram para nós, de uma hora para outra, o que são os peixes naqueles trechos de rio em que, de tão numerosos, podem ser apanhados com a mão, quase às cegas; aqueles peixes que, durante a época de reprodução, pulam eles mesmos nos colos dos pescadores, que só precisam ficar ali, parados, com uma rede estendida. De repente vimos que todo mundo diz uma coisa e faz outra; todo mundo é incondicionalmente brando com as causas com que simpatiza e incondicionalmente severo com as de que não gosta; todo mundo busca justificar os erros a favor, enquanto condena sem negociação os equívocos contrários; todo mundo abomina a violência contra os seus, mas acha compreensível a própria violência contra os outros; todo mundo só enxerga o seu lado, enquanto acusa os outros de só enxergarem o deles... Numa tal proporção que, atônitos, sem saber o que fazer, ainda só conseguimos apontá-las: — Mais uma incoerência aqui! E agora mais outra!

26.7.14

Solução

A divindade de Cristo foi a Igreja se eximindo do Sermão do Monte. 

Basta fazer

Número considerável de problemas começa quando já não basta fazer — seja o que for. Além de fazer, é preciso agora que todos saibam que se fez. E não só que todos saibam que se fez, mas que não se escandalizem ao saber. E não só não se escandalizem ao saber, mas que antes o aprovem, e que o achem bonito, e que o queiram pros filhos...

Dois pesos

O partidário encontra sempre atenuantes. O “não é bem o que parece” inaceitável é só o dos outros.

23.7.14

Uma sombra

Do Livro da Sabedoria, deuterocanônico também chamado Sabedoria de Salomão:
Como o navio que singra as águas ondulosas
sem deixar rastro de sua travessia
nem, nas ondas, a esteira de sua quilha;
ou como o pássaro que voa pelos ares
sem deixar vestígios de seu curso —
o leve ar, fustigado pelas penas,
fendido pelo vigoroso silvo,
é aberto em estrada pelas asas,
sem que se veja sinal algum de sua rota;
ou como a flecha disparada para o alvo —
cicatriza num instante o ar ferido,
ignorando-se o rumo que tomou;
assim conosco: mal nascemos, já deixamos de existir.
Ou, como o mesmo autor resume em uma única frase: “A vida é a passagem de uma sombra.”

A surpresa

Contar o episódio me lembra que não sei o nome dele e que preciso um dia parar e perguntar. Mas o senhor que passa os dias numa das esquinas próximas aqui de casa, ora sentado sobre a base da bomba de gasolina de um lado da rua, ora numa cadeira dentro do canteiro destratado que fica no lado oposto — sempre observando os transeuntes, quando não está cochilando —, esse sujeito, cujo nome acabo de lembrar que não sei, deu de me cumprimentar todas as vezes que me via. Chegou a se tornar um hábito. Já atravesso a rua o procurando para o bom-dia ou boa-tarde do costume. E estávamos nisso havia um tempinho, até que outro dia aconteceu de eu passar pouco depois de lhe terem pago um lanche. Ia me preparando para o alô protocolar, de todas as vezes, quando veio a surpresa: “Está servido?”

11.7.14

O radicalismo como preguiça

Uma das reações mais tipicamente brasileiras a grandes problemas é a exigência por reset. É tão funda a marca de uma colonização desastrosa, suponho, que a reconstrução a partir do zero é fundamento para a solução retórica de tudo. Enquanto não pormos abaixo as coisas como elas são, e as recomeçarmos agora da forma correta, não tem jeito, vai ser sempre mais do mesmo. Mas com uma particularidade. Diferentemente de outros povos, o brasileiro só projeta o drástico, que é pra se dispensar do simples; só exige o inviável, que é pra não se ocupar do possível. Enquanto não puderem mudar rigorosamente todas as coisas, então que não se mexa por alto em nenhuma. Estão fartos de paliativos: agora, nada menos que a efetiva resolução dos problemas, muito mais profundos. Ou tudo, ou nada — em poucas palavras. E optam por nada. 

9.7.14

A culpa

Scolari preferiu afundar a barca toda, ver o time inteiro humilhado ao fim do primeiro tempo, a admitir prontamente seu equívoco e a consertá-lo o quanto antes, ainda no início da primeira etapa, com a mera substituição de um ou dois jogadores, que então se tornariam os bodes expiatórios da derrota, em todo caso bem menos vexatória do que foi: se não me engano, foram 5 gols em 30 minutos de jogo, dos quais 3 gols ocorreram num intervalo de 10 minutos, o time desbaratado, sem meio-campo..., — 3 gols que a saída de Bernard sozinha facilmente evitaria. Um Louis van Gaal, por exemplo, e como tivemos ocasião de ver, não pensaria duas vezes em pôr quem quer que fosse na berlinda pra salvar um resultado. Scolari preferiu, porém, com a omissão, não comprometer ninguém, nem a si mesmo. Sem as substituições que qualquer técnico digno do nome teria feito, ele buscou eximir todo mundo de culpa (as alterações seriam uma espécie de confissão assinada, dele e dos substituídos), jogando a catástrofe no colo do imponderável. De uma covardia indigna da posição. 

7.7.14

Ishikawa

Três tankas de Takuboku Ishikawa, importante poeta japonês da virada do século XIX pro XX, morto aos 27 anos por tuberculose — teve apenas dez anos de produção poética —, na tradução conjunta de Masuo Yamaki e Paulo Colina, publicada em 86 pela Roswitha Kempf Editores. Como referi, trata-se de tankas — forma tradicional feita de cinco versos de 5-7-5-7-7 sílabas cada. Agora, não me perguntem por que são apresentados como tankas, se têm o formato, tanto no original japonês reproduzido no livro quanto na versão portuguesa, do haikai, composto sabidamente por apenas três versos. Desconfio que tenha que ver com a natureza subjetiva do assunto etc., mas é chute.

fumaça que se desfaz no céu azul,
fumaça que se desfaz melancolicamente:
meu espelho
*
morressem todos os que me humilharam,
ainda que por uma só vez:
essa a minha prece

*
minha cabeça parece um barranco
em que a terra, dia a dia,
desmorona, tristemente

Reduzidos

Gosto de imaginar que o sentido de redução, em português, mudou por consequência dos esforços de quem mais a praticava. Me explico. Até o século XVIII, reduzir era prioritariamente, conforme Bluteau e Moraes, numa acepção ainda próxima à do étimo latino, — reconduzir, redirecionar, ou mesmo trazer de volta, restabelecer. De onde seu amplo uso no discurso religioso de então. Segundo Vieira, por exemplo, a missão dos jesuítas no Brasil era “reduzir os índios à fé”, ou seja, reencaminhá-los a Deus, recolocá-los no caminho da salvação, dirigi-los para dentro da igreja. E tão eficazmente os reduziram, que não nos restou outra opção além de atualizar seu significado, que já não passa para nós da mais pura diminuição.

5.7.14

O fazedor de silêncio





















Um estilo bastante peculiar, o de Antonio Di Benedetto, fundamentado num verdadeiro horror ao lugar-comum, se bem que de natureza bem distinta ao de um Guimarães Rosa: não há espetacularidade alguma em suas frases, todas discretas, nem mesmo neologismos para além do que dá título ao livro, — frases no entanto sempre novas, inesperadas em seu rigor, precisão e exigência. Juan José Saer chega a dizer que Di Benedetto é dono de uma das dicções mais originais do século XX, juízo que, por exagerado que pareça, não é de todo injustificado. Frases discretas, sem qualquer espalhafato, eu dizia, como era de se esperar de um narrador que abominasse as interferências do ruído. Porque é precisamente disso que se trata: da saga de um homem que foge ao tormento causado pelo barulho que então começava a se tornar onipresente, no pós-guerra, por meio de fábricas, oficinas, rádios, alto-falantes... Melhor: da resistência fracassada ao barulho como metáfora de tudo quanto se impõe ao indivíduo e o impede de ser.

3.7.14

Dor

A primeira seleção a que eu assisti, em Copa, tinha ninguém menos que o Romário no comando do ataque. As seguintes, tiveram o Ronaldo, depois o Adriano. Que dor no coração estar vivo pra ver Jô substituindo Fred. (Agora, é verdade que, entre Ronaldo e Fred, contamos com Luís Fabiano, etapa de uma descensão tão regular que inclusive nos permite o vislumbre do que nos aguarda em 2018.)

Estratégia

Agora que perdeu a hegemonia do meio editorial, e já circula no Brasil um número considerável de autores conservadores e liberais dos quais nunca antes se tinha ouvido falar, parte dos esforços da militância esquerdista tem migrado para as livrarias, — uma vez que, se já não conseguem impedir que sejam publicados, que ao menos impeçam de serem vendidos, desencorajando à boca do caixa o máximo possível de clientes. A estratégia por enquanto vai despercebida. Mas é de se esperar o dia em que, descoberta, receberá também sua denúncia, quando então veremos a livre associação de pessoas interessadas na saúde intelectual da população brasileira, em iniciativas presumivelmente intituladas “Meu livreiro mentiu pra mim”, “Livraria sem partido”... 

26.6.14

“To disengage myself from those corpses of me”

O LIVING ALWAYS, ALWAYS DYING

O living always, always dying!
O the burials of me past and present,
O me while I stride ahead, material, visible, imperious as ever;
O me, what I was for years, now dead, (I lament not, I am content;)
O to disengage myself from those corpses of me, which I turn and look at where I cast them,
To pass on, (O living! always living!) and leave the corpses behind.

(Walt Whitman)

23.6.14

O lirismo

O lirismo é uma tentativa de fazer face a essa situação: o homem expulso da redoma protetora da infância deseja entrar no mundo, mas ao mesmo tempo, porque tem medo deste mundo, modela a partir de seus próprios versos um mundo artificial e de substituição. Faz girar ao seu redor os seus poemas como planetas ao redor do sol; torna-se o centro de um pequeno universo onde nada é estranho, onde sente-se em casa como a criança dentro da mãe, porque aqui tudo é moldado pela única substância de sua alma. Aqui ele pode depois terminar tudo o que é tão difícil fora; aqui ele pode, como o estudante Wolker, marchar com a multidão de proletários para fazer a revolução e, como o rapazola Rimbaud, remexer as suas pequenas apaixonadas, porque essa multidão e essas apaixonadas não são moldadas pela substância hostil de um mundo estranho, mas pela substância de seus próprios sonhos, são portanto ele mesmo e só rompem a unidade do universo que ele construiu para si mesmo.

Milan Kundera, A vida está em outro lugar, trad. Denise Rangé Barreto.

Demanda

Uma âncora que primeiro demandasse derivas e depois lamentasse ter sido levantada. 

Pose

O primeiro olhar alheio para o qual se posa é o próprio. 

20.6.14

Dívida

Megalômano tal qual é (autoproclamado maior intelectual brasileiro vivo, e se você não concorda, então aponte outro que saiba tanto e tantas matérias quanto ele ou o vença num debate sobre um tema da própria escolha), Olavo de Carvalho conseguiu criar aparentemente sozinho todo um repertório facilmente reconhecível de alegações fundamentadas numa luta meio neurótica do indivíduo contra forças totalitárias não tão ocultas assim (é preciso que cada um tenha sua arma e tire os filhos de sob a influência comunizante do MEC, porque Nossa Senhora apareceu em Fátima e disse qualquer coisa a respeito), além de um público amplo e heterogêneo de leitores-ouvintes, alunos ou não, — tão incondicionalmente favoráveis, uns, quanto ostensivamente contrários, outros, mas todos infalíveis no acompanhamento que fazem dele —, possibilitando com isso a emergência de meia dúzia de jovens parafraseadores de verve, os quais, tão logo cativam um público junto ao dele e o consolidam, garantem que pessoalmente não lhe devem nada.

14.6.14

Requisito

Antes de começarem a lutar pela mudança do mundo, era conveniente aguardarem pelo menos a mudança de voz.

7.6.14

Remorso





















Daquelas matérias para as quais eu era impermeável, a mais alienígena à minha compreensão foi sempre a química. As matemáticas me falavam dos números e das figuras geométricas, e eu os conhecia ainda que de vista; a física, por sua vez, me falava de móveis indo de um ponto A a um ponto B, e conquanto me fizesse perguntas a que eu era incapaz de responder, nunca me foi difícil ter em mente do que se tratava. Já a química, de que diabos me falava? Muito por negligência minha, terminei o ensino fundamental bastante longe de saber. Por isso o meu espanto com um livro como A Tabela Periódica, de Primo Levi, — livro autobiográfico em que cada capítulo narra um episódio de sua vida de judeu italiano e químico profissional envolvendo um dos elementos em particular da tabela. Primo Levi discorre sobre uma série de coisas para as quais eu toda vida fui surdo, mas de forma não apenas vagamente compreensível como também cheia de interesse. E tudo porque, além da significância das personagens que relembra e recria, Primo Levi procura dar caráter humano às reações químicas com as quais trabalhava, tirando delas implicações filosófico-existenciais, — ao menos nisso lhes atribuindo uma carga simbólica como a dos antigos alquimistas, sem nunca resvalar, porém, no misticismo. Por exemplo, ao explicar tecnicamente as propriedades reativas do zinco impuro (?), é a situação do judeu numa Itália já sob a vigência das leis raciais que ele ilustra, e assim por diante. Que mundo rico de sentido Primo Levi faz a química parecer, e de quanto remorso vai a leitura me enchendo por ter sido sempre o mais completo ignorante dela.

30.5.14

Questão de tempo

Aquela história de que quem ateia fogo em livro é porque ainda vai ateá-lo em gente me enche de preocupação toda vez que rasgo algum volume demasiado velho da minha estante: quanto tempo, meu Deus, até que eu esteja por aí esquartejando idosos?

29.5.14

“Beleza da intenção”

Um poema de António Botto (uma pequena poética, aliás) que reforça a queixa de Gide, segundo a qual não se faz literatura com bons sentimentos:
Busco a beleza na forma;
E jamais
Na beleza da intenção
A beleza que perdura.
Só porque o bronze é de boa qualidade
Não se deve
Consagrar uma escultura.
A par disso, as três repetições de “beleza” ainda na primeira estrofe (a beleza que o poeta busca) revelando sozinhas todo seu projeto estetizante, em que a obra vale ou deixa de valer por si mesma, isto é, por sua forma, indiferentemente à matéria de que é feita (o bronze: os valores morais, as ideias) e a qualquer outro propósito que não o de perduração.

23.5.14

Diálogo

Eu sei que não há nada mais obsoleto que a polêmica da semana anterior. É só que, folheando aqui o meu Assim falou Zaratustra, esbarrei com o que bem poderia ser uma resposta de ninguém menos que Nietzsche à famigerada campanha promovida por Neymar. Fiquei achando o diálogo tão insólito e digno de acontecer que, apesar do atraso e da consequente falta de propósito da coisa, reproduzo a contraparte do alemão, a título de curiosidade. Então quer dizer que somos todos macacos? Foi o tempo. Hoje “o homem é ainda mais macaco do que qualquer macaco”.

20.5.14

Jeanne Lee

Armistício

A música sempre ameaça dissolver a palavra, fazer dela instrumentalidade “vacante”, cerrar as portas do sentido reduzindo a linguagem à tautologia do sonoro. A palavra, por sua vez, põe em perigo a renúncia a toda tradução, a toda paráfrase, a toda redução ao unívoco da verdade analítica e pragmática, renúncia esta que é própria da música. Irmãs para sempre inimigas que entretanto não podem deixar de se encontrar em uma intimidade indissolúvel lá onde a poesia reclama, revoca (estas palavras tão “vocais”) o que nela é canto.

(George Steiner)

Patinho

Lembro muito bem que uma das razão que me convenceram a ler António Botto — uma das, porque houve outras — foram os elogios de escritores célebres que entremeavam o volume em que estavam coligidas suas “canções”. Eram de vários e vários, mas um em particular teve peso mais decisivo: Miguel de Unamuno. Folheando o voluminho, lá para as tantas, logo antes do início de uma nova série, vinha lá um baita elogio do basco: porque o António Botto isso, a poesia do António Botto aquilo. Ora, se Unamuno o leu e o recomenda...

Até que outro dia, passando desavisadamente por um ensaio sobre a mitomania de outro poeta, dessa vez a do brasileiro Bruno Tolentino — lido e elogiado por não sei que grande poeta francês, casado com a filha de não sei que outro figurão, professor convidado de não sei que universidade inglesa —, o autor, já não recordo quem, mencionava que, caso similar ao deste, talvez só o do — acreditem — António Botto, que parece havia inventado loas e mais loas de escritores de tudo quanto é nacionalidade à sua obra, escritores os quais muito provavelmente nem nunca o leram.

17.5.14

Cruzada

Acabado o vídeo do gato que salvou uma criança do ataque de um cachorro, de repente me sinto capaz de iniciar uma cruzada contra essa espécie abjeta que é a canina — cuja maior virtude é justo algo tão deplorável quanto a sujeição, máximo defeito que compensa e anula uma multidão de outros, e a respeito da qual estão certos os povos muçulmanos, para quem a figura do cão é das mais insultuosas.

Evidente que estou sendo injusto. Tão injusto com os cães quanto seus donos, esses caluniadores, são com os gatos, bichos “traiçoeiros”, que “se apegam mais ao lugar que ao dono”, e sei lá mais quantas merdas incansavelmente ditas e reditas.

Com a diferença de que, se eles são injustos a vida inteira, eu quero ser injusto apenas hoje: os cães não valem nada e merecem a sorte que têm na China.

12.5.14

Ao pai

Não bastasse Kafka passar a carta inteira se dirigindo ao pai como quem se justifica diante de Deus, ainda no final lhe concede a palavra e imagina por ele os possíveis contra-argumentos, fazendo da carta um perfeito Livro de Jó. Bizarro.

8.5.14

Diferença

É verdade que nada que os povos europeus tenham feito de condenável ao longo e a partir do período colonial não foi praticado em igual ou maior escala, antes ou depois, pelos mais diversos povos do mundo — como seus defensores se apressam em lembrar —, com a diferença de que nenhum destes o fez imbuído da caridade cristã e da salvação do mundo.

2.5.14

Admissão

Foi duro mas inevitável chegar ao fim da adolescência e me ver obrigado a admitir que não, eu não era melhor do que o tempo em que vivia, nem mesmo melhor do que o país em que havia nascido, do qual aliás nem teria meios de me livrar caso quisesse. Foi duro, inevitável e cheio de consequências talvez incalculáveis, dentre as quais a principal eu conheço e é a seguinte: desde então, nada se tornou pra mim mais inútil, mais incompatível comigo, mais inconveniente, que o discurso daqueles que — ora pelo apego a uma ideia parcial do passado, ora pela filiação a uma cultura estrangeira mais prestigiosa, ora pela participação no agenciamento de determinado futuro — falam como se de fora do tempo em que vivem, do país em que nasceram, da espécie a que pertencem...

Ameaça

A liberdade foi uma estratégia criada para que se pudesse perseguir em paz aqueles acusados de ameaçá-la. 

Tentativa

Quem sabe se tentando ser melhor do que pode o homem não acabou muito pior do que precisa? 

24.4.14

Um retrato nem só do artista não só quando jovem

Um dia em que todos os alunos, na hora do recreio, comprimiam-se diante do quadro-negro, ele achou que o momento finalmente havia chegado; aproximou-se sem ser visto de uma garota da classe que ficara sozinha em seu lugar; há muito ela lhe agradava e frequentemente trocavam longos olhares; sentou-se ao lado dela. Ao fim de um instante, quando os alunos, sempre levados, repararam neles, aproveitaram a ocasião para fazer uma brincadeira: saíram da sala de aula cacarejando e fecharam a porta a chave atrás deles.

Enquanto estava cercado pelo ombro de seus colegas, sentia-se natural e à vontade, mas no momento em que se viu sozinho com a garota na sala de aula, teve a impressão de que estava num palco iluminado. Tentou disfarçar seu embaraço com observações espirituosas (finalmente aprendera a dizer coisas diferentes das frases previamente preparadas). Disse que o gesto dos colegas era o exemplo da conduta mais ridícula; não trazia vantagem para quem a cometera (agora eles teriam que esperar no corredor com uma curiosidade insatisfeita) e era vantajosa para aqueles a quem pretendiam atingir (eles estavam a sós como haviam desejado). A jovem concordou e disse que precisavam aproveitar a ocasião. O beijo estava suspenso no ar. Bastava inclinar-se sobre ela. Mas seus lábios estavam inacessivelmente longe; ele falava, falava, e não a beijava.

O sino tocou, o que significava que o professora chegaria de um momento para outro, obrigando os alunos reunidos em frente à porta a abrir a sala. Aquela ideia excitava-os. Jaromil disse que a melhor maneira de vingar-se dos colegas seria fazer com que sentissem inveja ao vê-los se beijando. Ele tocou com o dedo os lábios da garota (onde ia buscar tal audácia?) e disse que o beijo em lábios tão maquiados certamente deixaria uma marca bem visível em seu rosto. Novamente ela concordou, dizendo que era uma pena que não tivessem se beijado, e assim que acabou de dizê-lo, pôde-se ouvir a voz irritada do professor atrás da porta.

Jaromil disse que era uma pena que nem o professor nem os colegas vissem no seu rosto a marca do beijo, e novamente quis inclinar-se sobre a jovem, novamente seus lábios parecendo-lhe tão inacessíveis quanto o monte Everest.

— Sim, eles precisariam nos invejar — disse a jovem, e tirou da bolsa um batom e um lenço, pintou o lenço de vermelho e borrou o rosto de Jaromil.

A porta se abriu, o professor enfurecido precipitou-se para dentro da sala de aula seguido pela tropa de alunos. Jaromil e a jovem levantaram-se como os alunos devem fazer quando um professor entra em sala: eram os únicos em meio às fileiras de bancos vazios, frente a uma multidão de espectadores que tinham os olhos fixos no rosto de Jaromil coberto de magníficas manchas vermelhas. E ele se ofereceu ao olhar de todos, orgulhoso e feliz.

(KUNDERA, Milan. A vida está em outro lugar. Trad. Denise Rangé Barreto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p. 132-133.)

21.4.14

“Briguinha de músicos malucos no coreto”

“Comidos pela raiva”

PAISAGEM

Os insetos atarefados,
os cavalos cor de sol,
os burros cor de nuvem,
as nuvens, rochas enormes que não pesam,
os montes como céus desabados,
a manada de árvores bebendo no arroio,
todos estão aí, felizes em seu estar,
diante de nós que não estamos,
comidos pela raiva, pelo ódio,
pelo amor comidos, pela morte.

(Octavio Paz)

Distância

Cada vez que ouço uma conversa a respeito de ambiente de trabalho compreendo um pouco mais os vagabundos.

Preparação

O grande esforço das mulheres é o de reproduzir na viagem a experiência de abrir o guarda-roupa e não ter o que vestir.

8.4.14

O pedido

Não me lembrava de em toda minha vida ter visto uma mulher madura, mãe de família, figura de matrona, mal se aguentando em pé de tão bêbada a caminho de casa, na rua já vazia da madrugada, num expediente tão masculino. Realmente não lembrava. E se não bastasse o impacto já grande da visão  uma mulher que bem poderia ter filhos da minha idade, com suas quatro sacolas de supermercado nas mãos, duas de cada lado, um vestido protocolar até o joelho, botões frontais de cima a baixo, a cor mais neutra, mais discreta possível, envergada, ziguezagueando pela calçada , aconteceu ainda de ela, no momento exato em que nos cruzávamos, ter parado e perguntado, a voz o próprio desconsolo: “Você me desculpa?” Desculpar o quê, minha senhora? o estado em que volta pra casa?  fiquei pensando, enquanto respondia ainda confuso, mais pra mim do que pra ela e sem exatamente me deter: “Desculpo, claro que desculpo.”

6.4.14

Mudez

Se alguém me perguntasse, eu diria que Lêdo Ivo é o poeta da mudez das coisas. Mudo deve ser o adjetivo que mais usa. De cabeça, lembro de vê-lo aplicado ao céu, ao mundo, ao chão, ao mar, ao corpo... E porque as coisas nada lhe dissessem, estava convocado a proclamar o que elas sonegavam, a dizer tanto a primeira palavra quanto a última, tanto a palavra primordial quanto a definitiva.

Sentido

O sentido da minha vida está nalgum serviço que não descobri a um próximo que não reconheço.

3.4.14

Memória

Os homens acreditam que um dia há milhões de anos desceram das árvores, onde viviam mais seguros. Quando o único lugar do qual desceram, na verdade, foi o colo dos pais, e há nem muitas décadas assim.

2.4.14

31.3.14

“Objectos do mundo”

... dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo.

(Herberto Helder)

Irmãos de dor

Imaginem a cara que não fiz ao tomar conhecimento de que Anna Akhmátova — a mulher de perfil triste mas forte — verteu para o russo um poema de ninguém menos que Antero de Quental. Quer dizer então que ela sabia português?! Não, de fato não sabia, tendo por isso trabalhado sobre uma tradução justalinear feita por outrem. O que não deixa de ser significativo, e não deixa de fazer todo sentido: ninguém cantou o sofrimento de forma tão constante e sublime quanto os dois. O poema em questão chama-se “Zara”, na verdade um epitáfio escrito para o túmulo da menina que dá nome à peça, irmãzinha de um amigo, — poema o qual Antero preferia que nem fosse publicado, mas permanecesse reservado à lápide, só ao alcance de parentes e amigos da família.
ZARA
Feliz de quem passou, por entre a mágoa
E as paixões da existência tumultuosa,
Inconsciente, como passa a rosa,
E leve, como a sombra sobre a água.
Era-te a vida um sonho. Indefinido
E tênue, mas suave e transparente...
Acordaste... sorriste... e vagamente
Continuaste o sonho interrompido.

26.3.14

Uma suspeita

Eu não gosto de crianças, nem de adolescentes, nem de jovens, nem de idosos. Suspeito que gostaria muito dos adultos, caso existissem.

22.3.14

Perfeito

São tantos os problemas que, pra quem nasceu pra reclamar, nunca houve tempo tão perfeito.

21.3.14

“Roubar com muito”

Do “Sermão do bom ladrão”, de Antônio Vieira, que com isso quase se redime:
Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém ele que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu porque roubo em uma barca sou ladrão, e vós porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres.

18.3.14

Conde de Bonfim

As janelas repousam sobre a fachada dos prédios como pombos sobre a rede elétrica. 

Melhor dos casos

No melhor dos casos, o professor é um picareta que começou a ensinar mesmo antes de acabar de aprender. 

Profecia

Passarão os céus e a terra, a tua graduação porém não terá fim. 

Impaciência

TROCA DE PNEU

Sento-me à beira da estrada.
O motorista troca o pneu.
Não quero estar lá, de onde venho.
Não quero estar lá, aonde vou.
Por que assisto à troca do pneu
com impaciência?

(Bertold Brecht, trad. Ricardo Domeneck. Poema que me lembra isto.)

15.3.14

“Os tiros dos combates”

Gregório de Matos, num dos raros momentos de folga à cretinice, sobre a dissimulação, tão cara ao XVII e tão caluniada a partir do XIX:
Largo em sentir, em respirar sucinto,
Peno e calo, tão fino e tão atento,
Que fazendo disfarce do tormento
Mostro que o não padeço, e sei que o sinto.
O mal, que fora encubro, ou que desminto,
Dentro no coração é que o sustento,
Com que para penar é sentimento,
Para não se entender é labirinto.

Ninguém sufoca a voz nos seus retiros;
Da tempestade é o estrondo efeito:
Lá tem ecos a terra, o mar suspiros.
Mas oh! do meu segredo alto conceito!
Pois não me chegam a vir à boca os tiros
Dos combates que vão dentro no peito.

Miramar

























Os temporais de Alexandria. A voz do vento nas janelas. O céu com suas nuvens  obsessivamente lembradas. O Mediterrâneo quebrando sobre a beira-mar. A volta para casa já ao fim da vida. O reencontro com o passado. A decadência.

Mais a sabedoria do velho Amer Wagdi, tão protetor; o cinismo do acuado Tolba Marzuq, nunca antipático, por mais que tente; a beleza bruta e incultivada de Zohra, tão querida; a introversão de Mansur Bahi e seus dilemas, tão compreensíveis; o destino de Sarhan Al-Biheiri, tão merecido...

Um único episódio (o confuso desfecho dos transtornos causados pela presença de uma mulher como Zohra em meio a tantos homens), contado desde a perspectiva de alguns desses personagens, verdadeiramente inesquecíveis.

14.3.14

Madame

O que a diferençava da empregada era o salário do marido. 

Esforço

Tanto se esforçou para me convencer de que a maior prova de meu fracasso na vida era o seu convívio, que conseguiu. 

13.3.14

Cão vivo

O covarde morre mil vezes antes de morrer uns trinta anos depois do corajoso.

10.3.14

Escape

A única forma de escapar à inutilidade, para alguns, é afundar-se nela.

Temperamento

Segundo Henri Michaux, tudo para os europeus precisa terminar em tragédia, a tal ponto que se Cristo não tivesse acabado numa cruz, não tinha conseguido na Europa nem cem discípulos. 

7.3.14

Incoerências

Se é verdade que as incoerências que percebemos com mais facilidade são as alheias, a nenhuma justificamos tão prontamente quanto as nossas. 

3.3.14

“Eu”

EU

E vês a folha
que oscila
por um átimo
no ar agitado
sobre as cinzas
em brasa? —

(Carl Jóhan Jensen, trad. Luciano Dutra.)

25.2.14

Português

O português é uma língua secreta falada por 250 milhões de pessoas espalhadas por 8 países com os quais ninguém se importa, nem mesmo elas.

20.2.14

“Liberdade”

Os americanos, sempre tão interessados na liberdade das gentes sob qualquer jugo que não o deles...

16.2.14

Desde que

O Brasil é um país tão ampla e diversamente povoado, que há gente bastante para a popularidade de toda e qualquer forma de pensar, desde que enviesada. 

7.2.14

Mudança

Nunca houve entre as formas de governo mudança mais profunda que a dos nomes dos cargos de quem manda. 

3.2.14

Culpa

Os homens já tiveram muitos deuses, de modo a não fazerem ideia de qual teriam ofendido. Depois passaram a ter um deus só, mas tão cheio de exigências, que impossível era saber à qual afinal andavam negligenciando. O resultado foi ter havido sempre, bem no cangote, uma divindade indignada com o que faziam ou deixavam de fazer. Até que as coisas finalmente mudaram. Hoje em dia, se os homens sentem ainda alguma culpa, é de ainda sentirem-se culpados.

29.1.14

Magia

A “liberdade” justifica todos os males que enseja, tanto quanto a sua “falta” conspurca os benefícios todos que assegura.

28.1.14

Insatisfação

O que o insatisfeito com os próprios sucessos menos perdoa é o contentamento dos demais com seus fracassos. 

Ficção

O grande mérito da ficção foi, à medida que o mundo se tornava o das falsas verdades, ir cada vez mais ostentando suas mentiras.

25.1.14

Prova

Você sabe que é amado pelos pais, se bem que não tanto, quando até sobra pastel — mas só de queijo.

24.1.14

Satisfação

O mais divertido em pesquisar a poesia de Gregório de Matos é que a essa altura os palavrões durante as aulas são absolutamente inevitáveis. E nós, sempre tão condicionados ao decoro, que satisfação infantil não tiramos de ouvir a orientadora, uma respeitabilíssima senhora da mais irrepreensível educação, falando por exemplo em “puta cagajosa”.

23.1.14

Revisão

Nunca se deveria opinar antes da próxima leitura.

Ainda e sobretudo

Toda a literatura é sempre sobre o que são os homens. Ainda e sobretudo quando trate do que poderiam ou deveriam ser. Ainda e sobretudo quando trate do que nunca serão.

Figura

A verdade é que não é possível olhar um técnico de vôlei feminino sem pensar na triste figura de um eunuco.

19.1.14

O homem

É o homem uma coisa que apodrece,
tecido carcomido pela traça.
E todos que são filhos de mulheres
têm curta a vida e cheia de tormentos.
São como a flor que se abre e logo murcha,
como a sombra que foge e não retorna.

(Jó 23:28-24:2)

Adiposidade

O leitor de José Saramago e o desânimo de quem assiste a um mágico de festa infantil puxando pela boca uma fita interminável.

18.1.14

Credenciais

O brasileiro, se não está exibindo credenciais (“Sabe com quem está falando?”), é porque as está solicitando (“E quem é você pra...?”).

“O perdedor”

Quem já vai perdido
deve ter cuidado:
não perder a perda
que é o seu achado.
Já que perdeu tudo,
não perder mais nada.
Ir de mãos vazias
pela madrugada
ouvindo no escuro
o canto dos galos
até que uma estrela
brilhe no céu mudo
anunciando o dia
que não dará nada
a quem perdeu tudo.
....................

(Lêdo Ivo)

Rumpilezz

13.1.14

Memória

A primeira partida de futebol da história da humanidade foi decerto jogada com a cabeça de um chefe inimigo, em festiva comemoração a um sucesso bélico sobre uma tribo vizinha, não sendo outra a causa (ainda que secreta) de seu apelo, tão universal. Nós não estávamos lá, mas como poderíamos nos esquecer?

9.1.14

Melquisedeque

Para uma apreciação melhor do poema a seguir, do português Ruy Belo, acaba indispensável o conhecimento do breve episódio envolvendo Abraão e o misterioso rei da não menos misteriosa Salém, encontrado em Gênesis 14:17-24. Melquisedeque, de quem se sabe apenas que, além de rei, era sacerdote do Deus Altíssimo, surge do nada, abençoa Abraão, recebe dele o dízimo, e depois volta ao nada, desaparecendo da história bíblica, para a qual retorna só na Carta aos Hebreus (cap. 7), numa leitura já cristã do Antigo Testamento, quando é tomado por “figura” do Messias e descrito como alguém “sem pai, sem mãe, sem genealogia, sem princípio de dias nem fim de existência.” De onde a inveja do poeta: a inveja de não ter que lidar, como aquele não teve, com os muitos dias escoando inutilmente (a incontornável insatisfação com o presente) por entre os dedos, até a chegada do fim.
Saudades de Melquisedeque
Esta manhã gostaria de ter dado ontem
um grande passeio àquela praia
onde ontem por sinal passei o dia
É difícil a vida dos homens senhor
Os anjos tinham outras possibilidades
e alguns deles foi o que tu sabes
Esta terra não está feita para nós
Mesmo que ela fosse diferente
nós quereríamos talvez outra terra
talvez esta de que agora dispomos
Não achas meu senhor que temos braços a mais
dias a mais complicações a mais?
Pra nascer e morrer seria necessário tanto?
Falhamos tantas vezes (Como os judeus que juraram
não comer nem beber até matar paulo
e apesar disso não o mataram)
É difícil a vida difícil a morte.
Por vezes os homens juntam-se todos
ou quase todos e organizam
grandes manifestações. Mas nada disso os dispensa
da grande solidão da morte
de termos de morrer cada um por nossa conta
Todos tivemos pai e mãe
nenhum de nós que eu saiba veio de salém

3.1.14

Três mais

Relendo por alto os arquivos do blog, constato as três leituras que mais tiveram ressonância em 2013:

Typee, relato parte biográfico, parte ficcional, quase etnográfico da vida em meio a uma tribo polinésia, escrito por Herman Melville, — livro responsável pelo pouco e temporário sucesso que teve em vida e completamente ofuscado pelo que lhe deu o imenso prestígio que alcançou depois da morte.

Naquele exato momento, livro de contos breves do italiano Dino Buzzati, de quem até folheei outros livros, mas não com o mesmo entusiasmo. A verdade é que passei o ano voltando às partes sublinhadas daquela prosa poética de primeira.

Testamentos traídos, de Milan Kundera, o livro de ensaios culpado pela espécie de fascinação em que caí. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, a mulher que traduziu tudo o que temos do tcheco em português, acabou muito provavelmente a pessoa que mais li durante o ano.

Teatro do mundo

..............................
Mais que o espectador
que saiu no entreato,
o suicida
é um ator
que questionou o teatro.

(Affonso Romano de Sant'Anna)

A invenção do fanatismo

Depois que se domina o mundo em nome da ideia de religião, fica restando apenas desacreditá-la.