29.1.14

Magia

A “liberdade” justifica todos os males que enseja, tanto quanto a sua “falta” conspurca os benefícios todos que assegura.

28.1.14

Insatisfação

O que o insatisfeito com os próprios sucessos menos perdoa é o contentamento dos demais com seus fracassos. 

Ficção

O grande mérito da ficção foi, à medida que o mundo se tornava o das falsas verdades, ir cada vez mais ostentando suas mentiras.

25.1.14

Prova

Você sabe que é amado pelos pais, se bem que não tanto, quando até sobra pastel — mas só de queijo.

24.1.14

Satisfação

O mais divertido em pesquisar a poesia de Gregório de Matos é que a essa altura os palavrões durante as aulas são absolutamente inevitáveis. E nós, sempre tão condicionados ao decoro, que satisfação infantil não tiramos de ouvir a orientadora, uma respeitabilíssima senhora da mais irrepreensível educação, falando por exemplo em “puta cagajosa”.

23.1.14

Revisão

Nunca se deveria opinar antes da próxima leitura.

Ainda e sobretudo

Toda a literatura é sempre sobre o que são os homens. Ainda e sobretudo quando trate do que poderiam ou deveriam ser. Ainda e sobretudo quando trate do que nunca serão.

Figura

A verdade é que não é possível olhar um técnico de vôlei feminino sem pensar na triste figura de um eunuco.

19.1.14

O homem

É o homem uma coisa que apodrece,
tecido carcomido pela traça.
E todos que são filhos de mulheres
têm curta a vida e cheia de tormentos.
São como a flor que se abre e logo murcha,
como a sombra que foge e não retorna.

(Jó 23:28-24:2)

Adiposidade

O leitor de José Saramago e o desânimo de quem assiste a um mágico de festa infantil puxando pela boca uma fita interminável.

18.1.14

Credenciais

O brasileiro, se não está exibindo credenciais (“Sabe com quem está falando?”), é porque as está solicitando (“E quem é você pra...?”).

“O perdedor”

Quem já vai perdido
deve ter cuidado:
não perder a perda
que é o seu achado.
Já que perdeu tudo,
não perder mais nada.
Ir de mãos vazias
pela madrugada
ouvindo no escuro
o canto dos galos
até que uma estrela
brilhe no céu mudo
anunciando o dia
que não dará nada
a quem perdeu tudo.
....................

(Lêdo Ivo)

Rumpilezz

13.1.14

Memória

A primeira partida de futebol da história da humanidade foi decerto jogada com a cabeça de um chefe inimigo, em festiva comemoração a um sucesso bélico sobre uma tribo vizinha, não sendo outra a causa (ainda que secreta) de seu apelo, tão universal. Nós não estávamos lá, mas como poderíamos nos esquecer?

9.1.14

Melquisedeque

Para uma apreciação melhor do poema a seguir, do português Ruy Belo, acaba indispensável o conhecimento do breve episódio envolvendo Abraão e o misterioso rei da não menos misteriosa Salém, encontrado em Gênesis 14:17-24. Melquisedeque, de quem se sabe apenas que, além de rei, era sacerdote do Deus Altíssimo, surge do nada, abençoa Abraão, recebe dele o dízimo, e depois volta ao nada, desaparecendo da história bíblica, para a qual retorna só na Carta aos Hebreus (cap. 7), numa leitura já cristã do Antigo Testamento, quando é tomado por “figura” do Messias e descrito como alguém “sem pai, sem mãe, sem genealogia, sem princípio de dias nem fim de existência.” De onde a inveja do poeta: a inveja de não ter que lidar, como aquele não teve, com os muitos dias escoando inutilmente (a incontornável insatisfação com o presente) por entre os dedos, até a chegada do fim.
Saudades de Melquisedeque
Esta manhã gostaria de ter dado ontem
um grande passeio àquela praia
onde ontem por sinal passei o dia
É difícil a vida dos homens senhor
Os anjos tinham outras possibilidades
e alguns deles foi o que tu sabes
Esta terra não está feita para nós
Mesmo que ela fosse diferente
nós quereríamos talvez outra terra
talvez esta de que agora dispomos
Não achas meu senhor que temos braços a mais
dias a mais complicações a mais?
Pra nascer e morrer seria necessário tanto?
Falhamos tantas vezes (Como os judeus que juraram
não comer nem beber até matar paulo
e apesar disso não o mataram)
É difícil a vida difícil a morte.
Por vezes os homens juntam-se todos
ou quase todos e organizam
grandes manifestações. Mas nada disso os dispensa
da grande solidão da morte
de termos de morrer cada um por nossa conta
Todos tivemos pai e mãe
nenhum de nós que eu saiba veio de salém

3.1.14

Três mais

Relendo por alto os arquivos do blog, constato as três leituras que mais tiveram ressonância em 2013:

Typee, relato parte biográfico, parte ficcional, quase etnográfico da vida em meio a uma tribo polinésia, escrito por Herman Melville, — livro responsável pelo pouco e temporário sucesso que teve em vida e completamente ofuscado pelo que lhe deu o imenso prestígio que alcançou depois da morte.

Naquele exato momento, livro de contos breves do italiano Dino Buzzati, de quem até folheei outros livros, mas não com o mesmo entusiasmo. A verdade é que passei o ano voltando às partes sublinhadas daquela prosa poética de primeira.

Testamentos traídos, de Milan Kundera, o livro de ensaios culpado pela espécie de fascinação em que caí. Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, a mulher que traduziu tudo o que temos do tcheco em português, acabou muito provavelmente a pessoa que mais li durante o ano.

Teatro do mundo

..............................
Mais que o espectador
que saiu no entreato,
o suicida
é um ator
que questionou o teatro.

(Affonso Romano de Sant'Anna)

A invenção do fanatismo

Depois que se domina o mundo em nome da ideia de religião, fica restando apenas desacreditá-la.