26.8.13

Mínima pedra

............................
este estar cercada de vidro
por todo lado,
podendo a mínima pedra
ser a ocasião do desastre.

(Marly de Oliveira)

Distância

no milímetro que nos separa,
cabem todos os abismos.

(Drummond)

25.8.13

Começo

A inutilidade da arte começa com a dos artistas. 

Grandeza

Como já ninguém pode sobressair-se aos demais sem rapidamente ser transformado em alvo de releituras críticas, levadas adiante pelos especialistas em desmerecimento, convém reformular o critério de grandeza. O grande homem passaria a ser não aquele em quem não se encontra sombra de baixeza, mas aquele que, ao contrário dos que o atacam, não se resume a elas. O escandaloso não seria, pois, que nos esfregassem as mesquinharias de alguém capaz de feitos extraordinários, mas antes um único grande ato do iconoclasta mais exigente. Assim, que Madre Teresa de Calcutá tenha mesmo desviado dinheiro de doações, como eu soube que se aventa, eu nem acho impossível, — não tão impossível quanto quem o sugere ter tirado um só miserável da rua, mesmo que por uma única noite.

23.8.13

Explicação

A esquerda, porque é mais ou menos dona do negócio, vive da necessária valorização do produto, acabando por deixar insatisfeita uma demanda irreprimível do nosso povo — a de ver-se xingado —, que é onde entra, de tempos em tempos, a direita.

Parábola

Trecho de um conto de Dino Buzzati, “A casa nova”, que fica muito bem de parábola. Conforme fazia Jesus, perguntemos: com o que se assemelha a vida? A vida se assemelha a um homem que 
volta para casa após ter comprado um armário magnífico e, impaciente, anda de cá para lá no vestíbulo, esperando a chegada dos entregadores; altura em que a campainha toca, e, em lugar deles, aparece o carteiro, trazendo a ordem de despejo para hoje à noite, às 21 horas. 

22.8.13

Problema

Meu grande problema com despertadores é que eles mais facilmente se integram a meus sonhos do que me acordam. 

Medievo

Enquanto os europeus compilam lendas de santos e comercializam lascas da cruz de Cristo, os árabes traduzem os gregos. 

21.8.13

Suspeitos

São tantas as doenças contagiosas, que é pouco nos preocuparmos só com as de pele. O ideal é que fosse proibido o ingresso em ambientes fechados de quem quer que não apresentasse à porta atestado médico emitido por órgão público responsável, ficando sujeito à detenção o camarada que não fosse capaz de comprovar sua inocuidade biológica. Por que haveríamos de confiar na palavra das pessoas (nunca nada é contagioso), ou ficar reféns da aparência, tão enganosa? — tanta gente sem nenhuma pereba na cara e por dentro mais podre que um cadáver, querendo dividir com os outros o vagão do metrô... Devíamos ser todos suspeitos até que provássemos o contrário. Até imagino os agentes da polícia, vestidos tão hermeticamente quanto astronautas, abordando cidadãos acusados de terem coriza escorrendo pelo nariz: “Bom dia, senhor. Nós recebemos aqui a denúncia de que o senhor estaria fungando, ela procede? Trata-se de uma calúnia? O atestado, então, por gentileza. Como não tem, se a consulta semanal é obrigatória? Compromisso muito importante? Mais importante que a saúde da população?! O senhor está preso.”

18.8.13

Blasfêmia

A Linguística é para os dias de hoje o que foi a Biologia para os do século XIX, sendo Marcos Bagno o nosso Darwin. E se já ninguém faz caso de descender de macacos, ai de quem rele na origem divina da norma culta ou da ortografia de 45.

O ornamento do mundo

A Península Ibérica foi sempre a periferia mais remota dos impérios aos quais pertenceu, um verdadeiro fim de mundo. E muito possivelmente nunca teria deixado de ser esse cu de Judas, mesmo que por alguns poucos séculos, não fosse a chegada de Abd al-Rahman às margens do Guadalquivir, por volta de 750, fugido de Damasco, onde viu a família — a casa dos Omíadas — não só perder o Império Islâmico como ser quase totalmente exterminada. Talvez nunca tivesse conhecido o gosto da proeminência intelectual, não fosse esse príncipe exilado, sem esperanças de reaver o trono agora ainda mais distante, levado que fora pelos Abássidas para Bagdá, ter decidido fazer daquelas ruínas romanas habitadas por bárbaros tão beatos quanto ignorantes a grande al-Andaluz, um dos centros culturais mais ricos de todo o medievo — pelo que diz María Rosa Menocal, em livro homônimo a este post, parece que já no século X havia só na biblioteca do califa de Córdoba, cidade que contava com quase uma centena delas, mais livros do que na Europa inteira.

12.8.13

Tudo

Sempre que chegam os dias dedicados aos pais, eu me vejo numa grande oportunidade de eximir os meus. A culpa não é deles, que fizeram de tudo.

11.8.13

Sociedade

A sociedade é uma mãe que julga ser capaz de impedir as merdas do filho adolescente primeiro as proibindo e depois o castigando. 

10.8.13

Motivo

Os artistas negligenciam as próprias vidas (quando não as arruínam), mas por um motivo nobre, muito especial, qual seja a distração daqueles que edificam as suas.

Arqueologia

Finalmente descobertas as ruínas do antigo palácio de Odisseu, em ilha que entretanto ninguém sabe se é a de Ítaca.

9.8.13

Mãe

Toda a força das três parábolas de Lucas 15 reside no fato de serem todas escandalosamente contrassensuais. O pai do filho pródigo, por exemplo, só é uma figura de Deus porque age como nenhum pai do mundo agiria. Deus é mãe. 

8.8.13

Sozinho

Viver com ele era como viver sozinho, com o dobro de trabalho. 

Defeitos

Os povos que se prezam primeiro corrigem os defeitos que conseguem corrigir e depois chamam virtudes aos que não conseguem.

6.8.13

Desespero

Sabendo chegada a sua hora, reunido aos discípulos pela última Páscoa antes de sua morte, Jesus começa a lavar-lhes os pés. A cerimônia corre bem até que Pedro — sempre ele — se recusa. — Os meus pés, nunca! — Mas, Pedro — explica o Mestre —, se eu não te lavar, é que não tens parte comigo. — Ah, é? Bom, se é assim, lava não só os pés, como também as mãos, os braços, mesmo as orelhas. E foi nesse desespero petrino que me fez pensar este outro, de Vinícius de Moraes:
Eu não sei tocar, mas se você pedir
Eu toco violino fagote trombone saxofone.

4.8.13

Epopeia

Narração grandiloquentemente elogiosa da temerária mesquinharia ancestral.