31.12.14

Jano

É possível que este se torne, ao longo da vida, meu poema oficial de ano-novo. Acho que já o compartilhei com esse mesmo propósito em anos anteriores, e volto a pensar nele agora em que mais do que nunca é tempo de olhar, tal qual o Jano do mês que se inicia, para frente e para trás ao mesmo tempo.
VELAS
(Konstantinos Kaváfis, trad. Ísis B. da Fonseca)
Os dias do futuro erguem-se diante de nós
como uma série de pequenas velas acesas —
pequenas velas douradas, quentes e vivas.
Os dias passados ficam atrás,
uma triste fileira de velas apagadas;
as mais próximas ainda exalam fumaça,
velas frias, derretidas e recurvadas.
Não quero vê-las; entristece-me seu aspecto,
e entristece-me lembrar seu primeiro clarão.
Adiante contemplo minhas velas acesas.
Não quero voltar-me para não ver, apavorado,
com que rapidez a sombria fileira se alonga,
com que rapidez se multiplicam as velas apagadas.

Companhia

Os gatos precisam estar o mais possível acompanhados, porque sentem muito a falta de alguém pra ignorar.

29.12.14

Notícia

O ano termina mas com a felicidade de ver uma seleção de epigramas e aforismos meus publicados no segundo volume da Revista Nabuco, no qual fazem modesta companhia a, entre outros, um ensaio muito necessário — de crítica pós-colonial — sobre o desafio que é pensar e escrever desde a América Latina em geral e do Brasil em particular, da lavra de Julio Cabrera, filósofo argentino radicado em Brasília, e um depoimento do mestre Ivo Barroso sobre Antônio Houaiss, outro gigante. O número pode ser comprado aqui e a revista assinada aqui

28.12.14

Dependência

Finalmente desfeita a última forma de dependência entre os homens, que já não precisam dos outros nem pra tirar foto em grupo.

O primeiro samba

O Brasil é cheio de circunstâncias tão maravilhosamente inexplicáveis quanto o fato de a composição reconhecida como o “primeiro samba gravado da história” ser na verdade um maxixe.

26.12.14

Espelinho da propaganda

É de conhecimento geral que os primeiros negócios entre nativos americanos e europeus se deram na base da troca, tanto de simpatias quanto de víveres por toda sorte de pequenos utensílios. Quem, aliás, nunca ouviu referência depreciativa aos índios, que se teriam vendido por meros colares?... Mas, meditando sobre os testemunhos dessas transações, é possível perceber que havia por trás delas mais do que o mero deslumbre pueril com o novo. Jean de Léry, por exemplo, nos faz saber que o interesse dos índios era significativamente utilitário. Eles dispunham-se a conceder o que os europeus solicitavam mas em troca de algo que lhes facilitasse a vida. Isto é, os objetos aceitos como pagamento eram aqueles que faziam melhor aquilo que os índios já faziam com artefatos por acaso menos eficazes. Segundo o francês, os tupinambás tinham as pinças em altíssima conta, e isso porque, como também nos informa, eles mantinham o hábito de arrancar todos os pelos do corpo, mesmo cílios e sobrancelhas. Ora, nada melhor para essa tarefa, então feita com a folha de determinada planta, do que as pinças, por isso muito apreciadas. Mais adiante Léry comenta o valor que os índios davam às facas, de grande ajuda nos frequentes sacrifícios rituais de prisioneiros de guerra: mais uma vez, não é difícil imaginar quão menos trabalhoso retalhar um homem com o auxílio do metal afiado havia se tornado — essa mesma observação podendo ser feita a respeito das espingardas em relação aos arcos e flechas etc. E foi pensando nesse uso conveniente do novo que me pareceu pertinente reavaliar a imagem pejorativa que se faz da parte indígena nesse comércio. Porque os índios não se deixavam guiar pelas novidades em si, nem permitiam que elas criassem necessidades novas e desnecessárias, digamos assim, mas antes se apropriavam das novas ferramentas sempre em função de demandas pré-existentes. Estavam, pois, definitivamente longe de ser os tolos enfeitiçados pelo brilho, os tolos do juízo injusto que fazemos. E nisso talvez tenham exercitado postura mesmo superior à que nós, modernos, apresentamos hoje, — nós sim à mercê de qualquer lançamento, nós sim adquirindo primeiro pra buscar depois alguma utilidade, nós sim entregues a qualquer espelhinho da propaganda e do marketing.

25.12.14

A imaginação

A imaginação consiste em expulsar da realidade vários seres incompletos para, com o auxílio das forças mágicas e subversivas do desejo, trazê-los de volta sob a forma de uma presença inteiramente satisfatória. É isso então o inextinguível real incriado.

(René Char)

Madeira

Os primeiros europeus a entrarem em contato com os índios não podiam mesmo adivinhar o que afinal fosse uma mandioca, razão pela qual depois voltaram pra casa espalhando que a gente por aqui chegava ao ponto de comer madeira ralada.

24.12.14

Alegoria

“Uma tormenta é menos temida em alto-mar do que próximo à costa.” — Observação meramente informativa de um relato quinhentista sobre a travessia do Atlântico implorando pra servir de alegoria.

A estrada

Álvaro de Campos: “o Destino a conduzir a carroça de tudo na estrada de nada.”

Contradição fundamental

Ninguém terá mais motivos para se queixar da vida, que afinal é sombra que passa, do que aqueles com os quais ela for mais extraordinariamente generosa; do que aqueles para os quais ela afinal seja o mais próximo possível de um paraíso, se bem que temporário, ou o mais valioso dos tesouros, a ser devolvido porém em dia que aliás só sabemos que chega sem anúncio. Dia esse — tão certo quanto inesperado, tão inevitável quanto imprevisível — em função do qual, quanto melhor for a vida de alguém, mais dolorosa necessariamente ela será. 

23.12.14

Solução

Estamos sempre recorrendo a ideários político-religiosos os mais distantes talvez porque o conhecimento livresco ou virtual ou quando muito turístico nos impeçam, providencialmente, a vivência íntima e própria da multidão de problemas colaterais inerentes a toda e qualquer solução. O que me permite supor que, se pudéssemos saber de tudo, não ousaríamos ser coisa alguma.

12.12.14

Roubo

A vez na vida que depois fiquei me sentindo mais roubado foi quando um sujeito com trejeitos de vigarista me abordou na rua pra contar de uma doença inventada de uma filha que não existia, e fingiu de forma muito mal fingida um choro que não chegava nunca até os olhos, e ainda conseguiu ao fim do papelão — até hoje me pergunto como — que eu lhe oferecesse comovido uns trocados que eu ademais sabia que me fariam falta.

Ainda

Não basta saber o que eles sabem: é preciso ainda desconhecer o que eles desconhecem.

Estabelecimento

A vida é um breve e rápido intervalo de tempo durante o qual nos dedicamos a estabelecer o que é melhor pros outros.

Civilidade

Mesmo depois dos problemas que tivemos, nunca deixou de me apertar a mão com firmeza, se bem que agora a imaginando meu pescoço. 

11.12.14