30.12.11

Casamento

“... decepcionante e terrível, assustador e chato, rotineiro e desinteressante. E no meio disso tudo, a melhor coisa da vida.”

Tiago Cavaco.

Rubaiyat

As quadras do persa Omar Khayyam podem ser encontradas, comumente, ou na adaptação inglesa de Edward FitzGerald — que se não foi seu primeiro divulgador no Ocidente, foi e é seu mais importante —, ou na tradução (diz-se) um pouco mais fiel de Toussaint para o francês, em versos livres. Em português, que eu já tenha visto, encontram-se na de Augusto de Campos para a versão de FitzGerald (numa recriação da recriação, para escândalo dos platônicos), — na de Octávio Tarquínio de Sousa, em prosa das mais elegantes, — e na de Manuel Bandeira, que volta às quadras, ainda que sem as rimas no esquema típico aaba. Ambos segundo Toussaint. Bem menos comentada, no entanto, é a não menos significativa tradução conjunta de Ragy Basile (orientalista, membro da Academia Brasileira de Filologia) e Christovam de Camargo. Digo não menos significativa porque, apesar do pouco prestígio e da forma aleatória, é a única para o português feita a partir do idioma de origem, o persa, e uma das poucas em geral com a preocupação de preservar não o espírito, ou a forma, mas sobretudo o conteúdo das quadras.
Arremessados a este mundo,
sentimo-nos perplexos,
desajustados, aturdidos,
perdidos em grande confusão:
trouxeram-nos à existência
contrariando nosso livre-arbítrio...
Forçados, igualmente,
partimos,
sem que, para isso,
tenha sido pedido
nosso consentimento.
Enfim,
não compreendemos —
nem o porquê da viagem
nem o motivo da nossa permanência,
nem a razão da próxima partida...
*
Exatamente
como o descuidado pássaro
que não pôde evitar a armadilha,
assim caímos na existência, —
feridos, ofegantes, atordoados,
inteiramente desorientados.
E assim temos de viver neste globo,
no qual não vejo teto, porta,
nem entrada nem saída.
Não foi por nossa livre vontade
que nele desembarcamos,
nem será pela ânsia de partir
que o deixaremos um dia.

28.12.11

Renard

Tomei notícia dos diários de Jules Renard (escritos entre 1887 e 1910) lendo os de André Gide, que a certa altura os menciona e rapidamente os comenta, numa admiração um tanto reticente, se bem me lembro. Para meu contentamento, descobri que neles Renard se dedica a observações psicológicas e literárias tão agudas quanto breves. Quando muito, se prolonga em diálogos dos quais foi testemunha, ainda eles curtos, protagonizados ora por amigos literatos, ora por anônimos. Dessa leitura incompleta e aleatória, fui separando e traduzindo o pouco que segue. 
Sou um escritor cujo gosto pela perfeição impede de ser grande.
De literatura francesa, não li mais que trechos escolhidos. Gostaria apenas de os ter escolhido eu mesmo. 
Recuso-me a saber o que pode pensar dos homens de talento o homem que não o tem.
Pouco a pouco vou renunciando a todas as coisas que não pude ter. 
Uma vez tomada a resolução, continuo indeciso. 
Se os homens tivessem o poder de completar a natureza, à serpente acrescentariam espinhos. 
É assim tão certo que se nasce para viver? 
Chamam “audacioso” o que deveriam chamar, simplesmente, “obsceno”. 
Lamartine imagina cinco minutos e escreve uma hora. A arte é o contrário disso. 
Ainda é feliz o homem que pode dizer: já fui feliz. 
A ocupação de um escritor é aprender a escrever. 
O arco de minha frase está sempre tensionado. 
Cada uma de nossas obras deve ser uma crise, quase uma revolução. 
Nosso melhor é incomunicável. 
O gosto da morte não se dá sem o desgosto de tudo o mais. 
Como homem, aceitar todos os deveres; como escritor, outorgar a si todos os direitos, inclusive o de zombar dos deveres. 
Quanto mais se lê, menos se imita. 
A recompensa dos grandes homens é, muito depois de sua morte, não estarmos certos de que morreram.

Como eu poderia ser a um só tempo anarquista e satisfeito? 
O fatigante suplício de, durante uma hora, dizer não a um senhor que gostaria de fazê-lo dizer sim.
Ela deixou escapar um segredo que não tinha. 
Francamente, amigos Barrés, Paul Adam, Bernard Lazare etc., por que aceitam a opinião da maioria em política se não a admitem nas artes?

27.12.11

21.12.11

Morreu, acabou

Falta ao Livro de Jó um futuro conceito-chave tanto do judaísmo como do cristianismo: a idéia de juízo post mortem. E porque lhe falta esse conceito, toda a crise quanto à justiça retributiva. Se Deus é bom, por que os justos sofrem e por que prosperam os ímpios? Mais tarde, poder-se-á dizer que, ainda que ela falhe nesta vida, não falhará na outra, como nos garantem, por exemplo, os evangelhos: bem-aventurados os pobres no espírito porque herdarão o Reino, e ai dos ricos porque já tiveram aqui o seu consolo. Mas Jó ainda não sabia pensar assim. Que Deus fizesse justiça enquanto era tempo, ou de modo algum a faria. E esse tempo era, naturalmente, o da curta vida humana — “flor que se abre e logo murcha” (XIV, 2) —, uma vez que, na morte, todos se igualam,
... pequenos e grandes se avizinham (III, 19.), 
e, se têm as árvores alguma esperança para depois de cortadas, 
O homem, porém, morre e jaz inerte;
Expira o mortal, e onde está ele? (XIV, 10.)

Resumindo De Quincey

A condescendência dos que se sabem inconfundíveis contra o não me toques dos iguais em busca de diferenciação.

19.12.11

Famílias de bispos

I know not whether my reader may have remarked, but I have often remarked, that the proudest class of people in England (or at any rate the class whose pride is most apparent) are the families of bishops. Noblemen and their children carry about with them, in their very titles, a sufficient notification of their rank. Nay, their very names (and this applies also to the children of many untitled houses) are often, to the English ear, adequate exponents of high birth or descent. Sackville, Manners, Fitzroy, Paulet, Cavendish, and scores of others, tell their own tale. Such persons, therefore, find everywhere a due sense of their claims already established, except among those who are ignorant of the world by virtue of their own obscurity: “Not to know them, argues one’s self unknown.” Their manners take a suitable tone and colouring, and for once they find it necessary to impress a sense of their consequence upon others, they meet with a thousand occasions for moderating and tempering this sense by acts of courteous condescension. With the families of bishops it is otherwise: with them, it is all uphill work to make known their pretensions; for the proportion of the episcopal bench taken from noble families is not at any time very large, and the succession to these dignities is so rapid that the public ear seldom has time to become familiar with them, unless where they are connected with some literary reputation. Hence it is that the children of bishops carry about with them an austere and repulsive air, indicative of claims not generally acknowledged, a sort of noli me tangere manner, nervously apprehensive of too familiar approach, and shrinking with the sensitiveness of a gouty man from all contact with the oi polloi. Doubtless, a powerful understanding or unusual goodness of nature, will preserve a man from such weakness, but in general the truth of my representation will be acknowledged; pride, if not of deeper root in such families, appears at least more upon the surface of their manners. 

 — De Quincey, Confessions of an English Opium-Eater, 1886.

Mundo

Um mundo em que, se tudo corre bem, enterramos os pais.

Das discussões

— O que não sucede a nenhum grande escritor. Sem exceção. 
— A nenhum? Mas e a Fulano? 
— Eu disse grande.

18.12.11

Mundial

A primeira coisa que precisa um time contra o Barcelona é manter-se acordado (desafio este análogo ao do público). A segunda é não ter na zaga um Durval.

E, por falar em não dormir, ou a Fifa institui no futebol algum limite quanto à posse de bola, como o do basquete, ou só mesmo os catalães pra resistirem ao... Zzz...

16.12.11

Internet

Na internet, só se deve confiar nos elogios. Os menoscabos são, de regra, tanto mais severos quanto maior o desconhecimento de causa.

Regra

Só me comovo com sofrimentos que me cheguem, no máximo, por via telefônica.

14.12.11

Dilema

Nada me convence mais de uma alternativa do que me obrigar à contrária.

Condição

A leitura — desde sempre e até pouco, hábito exclusivo de herdeiros emasculados — só não leva necessariamente à debilidade porque antes a exige.

12.12.11

Falta

Padecem nossos bem-sucedidos ao menos uma falta: a de pelo que fracassar.

8.12.11

Pra sempre


De Quincey

Feliz por ter lido De Quincey. Entre nós dá-se tanta ênfase ao lado intragável dos ingleses, que é maravilhoso topar com um que não adote nem endosse hábitos nem tons pretensiosos. Não há nele sombra de indiferença ou de hostilidade para com o vulgo, antes até o contrário. E só assim eu me lembro que nem todo inglês é lorde, e que afetar sê-lo, embora o seja a brasileiros, não é para eles opção.

O primeiro que li foi Do assassinato como uma das belas artes, escrito um pouco segundo o espírito da modesta proposta swiftiana. Há em tudo dois lados, um moral, outro estético. Também no assassinato. E se, num primeiro momento, lamenta-se o acontecido, num segundo parte-se para o julgamento dos meios e das artes empregados. O narrador: membro e conferencista de uma sociedade secreta dedicada ao desenvolvimento desse ramo da crítica.

O segundo, o já clássico Confissões de um comedor de ópio, livro que Borges suspeitava ter lido mais vezes, em que nos deparamos com o homem.

De Quincey, conforme conta, tornou-se proficiente em grego ainda aos 13 anos — dele dizia o único professor do qual fala com carinho que seria capaz de se dirigir a um público ateniense com mais propriedade do que ele, o professor, a um público inglês. E conhecendo mais de grego que seus docentes, se enchia de desgosto ao vê-los corrigir com o auxílio de gramáticas e dicionários as provas que ele fazia sem auxílio algum — ele que, já naquela altura, se exercitava traduzindo jornais para a língua de Homero: “It is a bad thing for a boy to be and to know himself far beyond his tutors, whether in knowledge or in power of mind.

Tão ruim, que não foi outra a causa das futuras e tamanhas desventuras.

6.12.11

Absurdo

Gerardo Mello Mourão, o homem que me fez sentir vergonha de desconhecer o Brasil, dizia ter aprendido a versejar com os repentistas sertanejos. Deles, quem também dá testemunho é Suassuna, que não perde oportunidade de recitá-los, sempre de cor. Vi outro dia parte de um documentário sobre os mais célebres desses homens, dentre os quais se destacam, aparentemente, Pinto de Monteiro (famoso pelo engenho), Louro do Pajeú (reputado trocadilhista) e o curioso Zé Limeira, dito poeta do absurdo, já quase lendário cantador paraibano, cujos versos nos chegam graças exclusivamente à boa memória do povo que o ouviu. Desse último, encontrei algumas coisas na internet, as quais já estão entre as mais divertidas que tenho lido. 
Um dia eu tava acordado,
No mais rancoroso sono,
Passou uma cobra azul
Falando num microfone,
E um mudo gritando em baixo:
— Vim buscar o meu abono! 
Sou casado e bem casado,
Com quem, não digo com quem.
A muié ainda é viva,
Mas morreu, mora no Além.
Se um dia voltar à terra
Vai morar no pé da serra,
Não casa mais com ninguém.
Casemo no ano de quinze,
Na seca de vinte e três;
A muié era donzela,
Viúva de sete mês,
Mais não me alembro que tenha
Um dia ficado prenha,
Estado de gravidez.

5.12.11

Vice da Gama

É preciso um esclarecimento: o problema não é tanto ser o segundo, como é o quase nunca ser o primeiro. Apontar o Flamengo como o time que mais vezes foi vice-campeão no Brasil depõe não contra, mas a favor do Rubro-Negro. E isso porque, de toda a campanha estatística promovida pelo Cruz-maltino, o que se evidencia é que o time da Gávea, quando não foi campeão (e lembremos que estamos entre os que mais o foram), esteve sempre muito perto de sê-lo, o que não só não nos diminui, como ainda nos aumenta o prestígio — ilustrado pela distância que separa um time que, de 10 torneios, ganha 5 e fica outros 5 em segundo e outro que, dos mesmos 10, ganha 1, é vice em 3 e mero participante nos demais.

3.12.11

Unamuno


Maçã

Talvez não haja modo mais seguro de passar despercebido com um Mac do que sempre manter à vista um adesivo da maçã.  

Medíocre

Chegar a melhor em algo é limitar-se a não poder sê-lo em qualquer outro. — A especialidade é uma redução da qual só o medíocre em tudo escapa. 

Lembrete

Ao fim da aquisição de uma língua, o máximo que se consegue é um meio.

1.12.11

Ela

Os defeitos dela têm ao menos esse mérito, que falta mesmo aos méritos das outras.

Eficácia

Meio mais eficaz de afastar as pessoas: aproximar-se delas.

29.11.11

Compensação

Aqui não se lê grego nem alemão, nem nada se escreve a não ser em português, mas, pelo menos, veste-se 44. 

28.11.11

Princípio

Só verificava o preço dos livros que havia de comprar fosse ele qual fosse.  

O aforista

Dizia Canetti que os grandes aforistas lhe pareciam todos bons conhecedores uns dos outros. Em muitos momentos, a mim chegam a parecer (e talvez não só a mim, tamanha a quantidade de equívocos nas atribuições) uma única pessoa. 

Prêmio

Tudo quanto um homem precisa é de uma mulher que lhe cumpra os requisitos mais caprichosos. Fossem as mulheres dos sonhos encontradas ainda cedo e mais freqüentemente, e de muita babaquice nos veríamos poupados.  

Literatura

Quanto mais exclusivo o domínio de uma técnica, maior o valor atribuído a quem a exerce, seja a qualidade do exercício qual for. E como toda a gente, que sempre sonhou e teve opinião, já lê e escreve... 

25.11.11

Utilidade

Algumas leituras servem ao menos à confirmação de que fazíamos bem em evitá-las.

23.11.11

Vitória

Minha única vitória na vida terá sido encontrar mulher disposta a compartir comigo as derrotas.  

18.11.11

Duas respostas à formiga

Porque não pode haver no mundo cretinice maior do que a daquela formiga, deixo após a versão de Bocage para o poema de La Fontaine duas respostas, das várias que, porventura existindo, eu desconheça.
A cigarra e a formiga
Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.
Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o aceso estio.
“Amiga, — diz a cigarra —
Prometo, à fé d’animal,
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o principal.”
A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
“No verão em que lidavas?”
À pedinte ela pergunta.
Responde a outra: “Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora.
— “Ó! Bravo! torna a formiga;
Cantavas? Pois dança agora!”
Ao que responderam, em 59, o português Miguel Torga:
Fábula da Fábula
Era uma vez
Uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora,
Que, em verso e prosa,
Toda a gente inteligente,
Prudente
E sabedora
Repetia
Aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base duns insectos,
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.

E, realmente...
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demónio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.
e o italiano Eugenio Montale, em versos só publicados, postumamente, em 96, vertidos aqui por Ivo Barroso:
Qual a diferença
entre a cigarra e a formiga,
entre o dissipador e o parcimonioso,
se um e outro acabarão despidos
no fim da viagem que a todos
nos iguala? “Nem vencedor,
nem vencido”, o dito popular
serve decerto para assinalar 
a mortal armadilha das escolhas.
Como barcos quiséramos vogar
a plagas bem melhores, mas ficamos
ancorados ao nosso nada.  
Discussão — já milenar, se se leva em conta que La Fontaine repetia Esopo — da qual eu destacaria duas coisas. A primeira delas: embora não tenha ajuntado, a cigarra não passou o verão coçando, como se diz. Esteve muito ativa: “... Eu cantava / Noite e dia, a toda hora.” — o “folgado”, logo do princípio, é coisa da cabeça de Bocage, não havendo no original (“La cigale, ayant chanté / Tout l’été”). A segunda, a convergência complementar. Se Torga aponta a morte em vida de muitos vivos (meras “bestas sadias”, que nos enchem o globo), Montale aponta para a morte da qual não escapará mesmo o mais providente.

Comédia

Antônio Vieira, em carta de 28 de fevereiro de 1658 ao também padre Francisco de Avelar, a propósito da impressão de seus papéis: 
... Não há maior comédia que a minha vida, e quando quero ou chorar ou rir, ou admirar-me ou dar graças a Deus ou zombar do mundo, não tenho  mais que olhar para mim. 

15.11.11

14.11.11

Autoimagem

No ritmo que com o passar dos anos minha autoimagem diminui, calculo chegar à velhice não me achando mais que gênio.

11.11.11

Autocontrole

A primeira coisa que faço todos os dias, quando me levanto, é jurar nunca mais pôr os olhos sobre nada pessoal na internet. A segunda, é entrar no Facebook.

Promessa

São já tão poucas as idéias, e sem um blog mesmo elas se perdem. A promessa é de que dure até que torne a me matar de vergonha.

Pretentious things