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26.9.20

A história arquetípica da imaginação islâmica


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ao tomar conhecimento da traição da mulher, um sultão decide que mandará matar ao amanhecer cada mulher com a qual tiver se casado na noite anterior. E assim o faz, até que Xerazade tem um plano. E o plano de Xerazade para manter-se viva é contar ao sultão a reencenação interminável da própria condição. A cada noite Xerazade retoma a história interrompida ao fim da noite anterior, quase invariavelmente a história de alguém que conta uma história para escapar da morte, tantas vezes envolvendo mulheres adúlteras. No fundo de todas as histórias, ressoando, a história arquetípica da imaginação islâmica: a história de José. Aquele que escapa da morte e leva a melhor sobre os que o queriam matar. Aquele que escapa do poço e chega ao trono. Nesse sentido, José seria o primeiro conto escrito das Mil e Uma Noites. Primeiro e talvez único: o conto que — como o quarto do palácio de cem quartos dentro do qual há outro palácio de cem quartos — contém todos os outros. Um conto com tanto poder sobre a imaginação islâmica, que a ele tiveram de acomodar até mesmo a história de Cristo, o qual não poderia senão ter escapado, na última hora, de morrer sobre a cruz.

3.9.20

A Epopeia de Gilgamesh

É mesmo possível que tudo já esteja na Bíblia e em Homero. Eis, porém, onde já estavam tanto Homero quanto a Bíblia, e também Hesíodo, e Virgílio, e as sagas islandesas, e Dante, e a poesia mística medieval, e o romance moderno, e tudo o mais. O herói que tem seu amigo/duplo (Aquiles e Pátroclo, Davi e Jônatas, Quixote e Sancho), o herói que desce ao mundo dos mortos (Orfeu, Ulisses, Eneias, Dante), a guardiã do vinho que recomenda os prazeres da vida (Horácio, Eclesiastes, Khayyam), o herói matador de monstros (Hércules, Sigurd, Teseu), o herói que sobrevive a um cataclismo provocado como castigo pelos deuses (Noé, Deucalião, Ló), o herói que nega o amor de uma mulher para cumprir sua missão (Ulisses e Circe, Eneias e Dido, o cavaleiro andante), a mulher responsável pelo fim da harmonia entre o herói e o meio (Eva, Pandora), a inconformidade do herói ante o sofrimento e a morte (Jó, Sidarta, Ivan Ilitch), o herói que é meio humano e meio divino, o herói que perde no último instante aquilo que foi buscar, e deixa gravado em pedra aquilo que aprendeu dos deuses, a árvore da vida de cujo fruto o herói se vê privado, o herói que é livrado pelos deuses de passar pela morte sendo arrebatado, os deuses que guiam à vitória o exército comandado pelo herói, o pão e o vinho como oferta memorial ao herói finalmente morto, tudo isso já está nesse poema sumério que já devia ser recitado por volta de uns três mil anos antes de Cristo. Assustador.

9.5.20

Os Patriarcas

Um irmão que mata o outro irmão; as filhas que engravidam do pai; a esposa que oferece outra mulher ao próprio marido; o pai que na última hora desiste de matar um dos filhos, depois de já ter abandonado o outro à própria sorte; o irmão que trapaceia o irmão; a mãe que ajuda um filho a enganar o outro filho; o filho que, com o auxílio da mãe, engana o pai já velho à beira da morte; o tio que engana e explora o sobrinho, que depois dá o troco ao tio e sequestra as primas; a nora que engravida do sogro; o irmão que é vendido pelos irmãos... E tudo isso, de acordo com o Gênesis, numa única família.

Assim como Paul Johnson escreveu um livro contra a influência das ideias progressistas contando fofocas a respeito de seus autores, e o chamou Os Intelectuais, imaginei um outro, nos mesmos moldes, contra as prerrogativas do monoteísmo abraâmico, intitulado Os Patriarcas...

Porque, se gregos e latinos gostavam de uma carnificina (donde os poemas épicos), os hebreus tinham clara preferência pela confusão entre parentes, o que faz do Gênesis um precursor desses programas dedicados à exposição de escândalos familiares. O autor de As Metamorfoses está para o José Luiz Datena do Cidade Alerta como o autor do Gênesis está para o Ratinho do Teste de DNA...

Inclusive, pode até ser que seja a isso a que as pessoas se referem quando falam em “civilização greco-judaico-cristã”: o encontro dessas duas preferências (sangue e vexame) na mesma grade de TV.

2.5.20

A prioridade daquele que vem depois

Há no Gênesis — um dos textos a que mais volto na vida — muitas reincidências, dentre as quais a seguinte: a disputa entre irmãos (por vezes gêmeos, mas nem sempre) pela preferência paterna, que de maneira intrigante recai sempre sobre os mais novos, em detrimento da prioridade natural dos mais velhos. Do início ao fim do livro — isto é, dos filhos de Adão aos filhos de José —, repete-se a vitória tumultuadora dos mais novos: Caim e Abel; Ismael e Isaque; Esaú e Jacó; Zara e Farés (gêmeos como Esaú e Jacó, tal como aqueles começam a competir ainda no ventre da mãe, já na hora do parto); Manassés e Efraim (os quais recebem do avô Jacó uma benção absurda, conferida com as mãos cruzadas, para que a mão direita pousasse sobre a cabeça do mais novo, naturalmente posto na direção da mão secundária, a mão esquerda)... Pensando nessa insistência pelo mais novo, pelo menor, pelo sem direito, parece estranho que o Cristo, para quem também “os últimos serão os primeiros”, “os humilhados serão exaltados”, tenha sido não o filho mais novo de Maria, mas justamente o primeiro, se não mesmo seu único filho (a depender da tradição), tal como, da parte de Deus, era desde o princípio o “primogênito de toda criação”, o “unigênito do Pai”, o Filho Único por excelência... Talvez por isso a importância de uma figura como João Batista, o precursor que anuncia a prioridade do que vem depois...

Sonho vingativo

A história de Noé, que escapa de perecer com todos os seres em terra firme flutuando num barco à deriva sobre as águas, só pode ser o sonho vingativo de algum náufrago.