28.6.22

É isto um homem?, de Primo Levi


A história dos homens é, desde que passaram a deixar registros, uma história feita de violências atrozes, com muita frequência contra velhos, mulheres e crianças. 

A violência faz parte tão grande das relações humanas, que os poucos homens que apareceram falando de paz — um Buda, um Jesus, um Francisco de Assis — nunca mais foram esquecidos pelos povos. 

Se assim é, o que diferenciaria a violência alemã contra os judeus de todas as violências cometidas antes e depois do nazismo? 

Um episódio de Kaputt ajuda a explicar. Conta Malaparte que, ao tomar conhecimento de um massacre a um bairro judeu na cidade romena de Jacy — massacre feito à moda antiga, à velha maneira dos pogroms medievais — um oficial alemão se escandaliza: “Os romenos ainda não são um povo civilizado”. 

Ora, o que distingue a violência alemã é o seu caráter impessoal, burocrático; o alcance desumanizador — e não apenas para a vítima — da sua crueldade asséptica, clínica, industrial, científica. 

Os alemães não foram os primeiros genocidas nem serão os últimos, mas ninguém jamais havia empregado todas as grandes conquistas da Razão e do Progresso a serviço do extermínio.

24.6.22

Estação Carandiru, de Drauzio Varella


Com suas infinitas possibilidades, a vida é um quebra-cabeça insolúvel, sempre mais confuso, mais perturbador do que gostaríamos que fosse. São muitos os que, diante da vida, não fazem mais do que ignorar tudo que não diga respeito a sua mínima parte. 

Por isso, uma das grandes contribuições da literatura — ficcional, histórica, jornalística, etnográfica — foi desde sempre ampliar o conjunto de experiências humanas a que dificilmente os leitores teriam acesso sem ela.

Com esse objetivo, um autor precisa manter-se o mais possível de fora. A arte depende muito de certa ambiguidade, ainda que involuntária. Muitas obras escritas contra ou a favor de algo foram bem-sucedidas porque falharam nesse intuito, ou porque os partidos perante os quais se posicionavam já não existem. 

Homero pede que as Musas o auxiliem a exaltar a ira de Aquiles e acaba nos levando a chorar a morte de Heitor. Até hoje ninguém pode garantir se Cervantes estava condenando ou homenageando o tipo de loucura conhecida como quixotesca. E se é verdade que Dante escreveu contra adversários políticos, por sorte é-nos absolutamente indiferente pelo que disputavam guelfos e gibelinos. 

E não é de outra maneira que Drauzio Varella se pôs no meio da população carcerária do extinto Carandiru, misto de Dante descido aos Infernos com missionário etnógrafo, mas um Dante apartidário, um missionário sem mensagem condenatória, juízo duplamente suspenso, como médico e testemunha. 

22.6.22

Gaslighting medieval


Uma das formas atuais de progresso consiste na invenção de palavras inglesas para velhos problemas e a subsequente adoção dessa mesma palavra inglesa pelo mundo inteiro. Se isso não garante por si só a resolução do problema, ao menos é o primeiro passo para alcançá-la, uma vez que junto com a palavra criada pelos americanos espera-se que venha também a solução proposta por eles. O maior exemplo do que digo é a palavra bullying, relativamente recente em nosso vocabulário, mas sem a qual já ninguém consegue falar da infância. Os casos, porém, são incontáveis. A última palavra desse tipo que descobri foi gaslighting, que significa o ato de manipular uma pessoa garantindo que as coisas que ela viu e ouviu em momento algum aconteceram, até que ela se convença da própria insanidade. Coincidência ou não, todas as vezes que vi essa palavra utilizada ela estava no contexto de abuso psicológico praticado por homens contra mulheres, nunca — que eu tenha visto — o contrário. E essa circunstância me fez lembrar que o caso mais grave de gaslighting já registrado na história foi precisamente o de uma esposa contra seu marido. A história quem a conta é Boccaccio, no Decameron, onde aparecem muitos outros casos menores dessa natureza, vários deles contra o pobre Calandrino, mas nenhum comparável ao que fez Lídia contra seu marido Nicostrato. Conforme narrado por Dioneu na Nona Novela da Sétima Jornada, Lídia simplesmente transou com o amante na frente do marido, que logo a seguir foi convencido por ela, muito ofendida pela mera suspeita do marido, de que nada do que ele tinha visto aconteceu. Lídia e Pirro não haviam transado na frente de Nicostrato. Nicostrato é que estava doido. 

17.6.22

Malaparte, uma Sherazade dos crimes de guerra


Kaputt
é, a rigor, não um testemunho, tampouco uma denúncia, mas antes a recordação minuciosa das cores, dos sons e dos odores da guerra alemã (céus verdes, sons doces, cheiros gordos). É também uma dolorosa elegia para o velho mundo da guerra de proporções humanas, feita a cavalo, com espada e tiro de espingarda, mundo morto pelos tanques e bombardeios aéreos da guerra mecanizada, tão destruidora. Como um dândi da catástrofe, como um flâneur de campos arrasados de batalha, o interesse de Malaparte num massacre estava sempre menos no sofrimento das vítimas do que no requinte inesperado de um carrasco. Era nessa contraposição muito sutil, sempre irônica, quase ambígua, da hiper-educação com a crueldade mais atroz que residia aquilo que se poderia chamar de crítica: filho de um protestante alemão com uma católica italiana, Kurt Suckert parece ter nascido para a ambiguidade, a ponto de eventualmente trair certa satisfação com aquilo que com sinceridade repudia. Em termos literários, Malaparte é como um Proust (a comparação é ele mesmo quem sugere) que, em vez de reuniões com madames, descreve jantares com criminosos de guerra e que, em lugar de vestidos, relembra com pormenor a destruição.