29.4.20

A importância de se ler a Bíblia como um livro antigo qualquer

No fundo, acho que não confio em escritores que não conhecem a Bíblia. Por exemplo, muito acima de Bandeira, Drummond e mesmo João Cabral, para mim está o Murilo leitor do Apocalipse. Esse talvez seja um critério eletivo do qual só agora vou tomando consciência e que talvez explique muita dificuldade minha com a literatura contemporânea em geral. As pessoas já não sabem que a Bíblia é preciosa demais para ser lida apenas por crentes apologetas ou refutadores ateístas, justamente os dois tipos de pessoas que menos proveito sabem tirar de tudo aquilo. Falta quem leia a Bíblia como um Machado a lia, ou um Melville, ou uma Dickinson, ou um Gide, ou um Mann, ou um Joseph Roth, ou um Faulkner, ou um Joyce, ou um Ruy Belo, ou um Torga, ou mesmo como um Tolstói ou um Dostoiévski, de certo modo crentes mas de um outro tipo. Talvez resida nisso a grande força dos judeus centro-europeus que tanto impacto causaram na literatura no início do século XX, grandes leitores da Bíblia que sobraram em meio a um mundo já secularizado. 

Isso com relação à literatura. Por outro lado, em que medida não caímos no buraco em que estamos justamente por termos abandonado a Bíblia na mão daqueles que só a sabem ler como critério da verdade? Em que medida uma cultura de leitura cética, livre, não dogmática, crítica, descrente, literária da Bíblia não evitaria tamanha influência evangélica nos rumos políticos do país? Talvez a solução contra um avanço evangélico na cultura não esteja exatamente na exclusão da Bíblia, mas antes na sua presença até a banalização. Não a Bíblia retirada da cultura e guardada como arma secreta nas igrejas a ser estourada a qualquer momento em praça pública pelo fundamentalismo, mas a Bíblia tratada quase vulgarmente como um livro antigo qualquer, fonte fundamental de leitura um pouco a despeito das crenças dos autores e das personagens.

25.4.20

Anaximandro, Lao Tsé, Jonas

Não é apenas no modo como se referem ao Tao e ao ápeiron que Lao Tsé e Anaximandro se assemelham (ambas designações do princípio imaterial, inesgotável, inapreensível da realidade), mas também na compreensão de como todas as coisas nascem a partir dos pares de opostos complementares de alguma forma derivados daquela unidade primordial: assim como Lao Tsé desdobra o Yin e Yang, Anaximandro aponta para a “separação dos contrários em consequência do movimento eterno” (também o Tao “flui sem cessar”), tais como “o quente e o frio, o seco e o úmido”, etc. Outra relação inesperada surge quando a Anaximandro se atribui a ideia de que os primeiros homens nasceram no interior dos peixes e de lá só foram expelidos para a vida na terra após terem amadurecidas as capacidades necessárias à preservação da nova espécie (além do mais Anaximandro foi o primeiro evolucionista), hipótese que dá a Jonas a aparência de um velho mito da criação do homem já esquecido, para o qual se arranjou depois outro significado.

Um Deus com dentes

Desde que, ontem, aquela mulher se debruçou sobre a minha boca aberta e passou a mexer num de meus sisos como um mecânico ocupado em desaparafusar a roda de um caminhão, comecei a pensar em como uma ida ao dentista é um grande empecilho à ideia de um Deus encarnado. Porque um Deus encarnado é, afinal, um Deus com dentes, e os dentes acumulam detritos, eventualmente se quebram, sofrem cáries, se inflamam, exigem ser arrancados, e isso obriga a pensar em palavras divinas pronunciadas com o auxílio de dentes que aos poucos apodrecem. Decerto foi para impedir a oportunidade de pensar-se em Deus de boca aberta na cadeira de um dentista que os Evangelhos pulam dos primeiros anos da vida de Cristo logo para os últimos, já que até nos é possível cogitar um Deus transcendente que assume um corpo, mas não tanto lidar depois com o corpo desse Deus sendo corpo. Conseguimos imaginá-lo nascendo e sendo morto, conseguimos até imaginá-lo caminhando, falando, comendo, dormindo, chorando; muito mais difícil é imaginá-lo corpo da superfície para dentro. Porque a vida do corpo é feita de servidões muito indignas a um Deus transcendente: dores e soluções absurdas para essas dores. De modo que é possível cogitar um Deus que se encarna num corpo que cresce, não tanto num corpo que decai e vai perdendo partes; um Deus que se encarna para a salvação do mundo e a consuma antes da necessidade de extrair um dente; um Deus, portanto, que morre cedo, jovem, e ressuscita na plenitude agora permanente desse corpo. E, de fato, como tomar sobre si as dores do mundo, e depois reinar sobre ele eternamente, a não ser com sisos bem saudáveis?

Também eu não sabia muitas coisas

Como todas as crianças, também eu não sabia muitas coisas. Porém, olhando para trás, o que me complicou mais do que o necessário foi ter perdido o hábito de perguntar. Tenho muito nítida a memória do embaraço de minha mãe durante a conversa típica sobre Deus — mas se Deus é o criador de tudo, então quem é o criador de Deus? — e, por timidez, a partir daí não perguntei mais, me ocupando sozinho com a formulação de hipóteses, naturalmente as mais absurdas. Deve ter sido essa a causa de, por muito tempo no começo de minha vida, eu não saber que o dia do aniversário não era um dia escolhido arbitrariamente pelos pais, mas o dia fatídico do nascimento. Então durante muito tempo o dia do aniversário dos outros foi para mim um grande mistério: por que comemorar o aniversário nesse dia e não em qualquer outro? O que leva um pai a escolher determinado dia, dentre tantos? Que tarefa desafiadora devia ser escolher o dia do aniversário de um filho. Ainda mais uma escolha assim tão definitiva, já que era comemorado no mesmo dia todos os anos. Do aniversário dos outros era natural que eu passasse ao meu próprio aniversário, que se dava numa data bem pouco significativa, longe de todos os grandes dias cívicos e religiosos do ano. A suspeita foi de que talvez meus pais não gostassem tanto assim de mim para escolherem um dia que fosse importante para outras muitas pessoas, como deviam ser importantes os filhos que faziam aniversário junto a feriados nacionais. E fui remoendo essa mágoa de meus pais até que um dia, já não lembro como, descobri. Então o dia do aniversário era apenas outro nome para o dia do nascimento? Então o que as pessoas comemoram no dia do aniversário é na verdade o dia em que nasceram? Coisa espantosa. Tudo passou então a fazer mais e menos sentido. Fazia todo sentido que não fosse assim uma escolha arbitrária dos pais. Mas comemorar o próprio nascimento? Ainda não conhecia Jó, mas então já me pareceu muito esquisito.

Contos de Amor e Morte, Arthur Schnitlzler





















A partir da leitura deste livro, fica impossível reconhecer a legitimidade de qualquer lista de maiores contistas que não comece por Arthur Schnitzler, nem qualquer antologia de melhores contos já escritos que não tenha os contos “A profecia” e “O diário de Redegonda”. O contraste com Tchekhov (curiosamente, ambos médicos) é enorme — a vagueza e a abertura do russo, o cálculo e a precisão do austríaco; o olhar cheio de compreensão do primeiro para com as pessoas comuns, a perspectiva de condes e barões e burgueses tratada com ironia pelo segundo —, a não ser em uma coisa: a perfeição absoluta no efeito pretendido por cada qual. Os contos de Schnitzler são engrenagens perfeitas, sem uma frase a mais, uma palavra fora de lugar, um fio solto, tudo minuciosamente arranjado. Perto de um conto de Schnitzler, até a prosa de um Flaubert parece imprecisa. Contribui muito com isso a qualidade da tradução de George Bernard Sperber, num português excelente, e da edição, que não deixou escapar uma vírgula, uma gralha. Também chama a atenção o interesse cético de Schnitlzer pelos fenômenos sobrenaturais, pelo ocultismo tão em voga na Viena do seu tempo. E, por falar no ocultismo da Viena de seu tempo, as pessoas que vão até a nova série da Netflix em busca de Freud fiquem sabendo que o que a série oferece é o universo de Schnitzler: a série é uma novela menos sutil de Schnitzler com Freud como protagonista.

Lojas de canela, Bruno Schulz





















Lojas de canela é um livro de contos que Bruno Schulz tira das memórias de uma infância sem acontecimentos numa cidade pequena da Polônia, onde, para ele, os grandes labirintos eram formados pelos corredores entre as casas vizinhas e os pássaros em bando eram o espetáculo mais extraordinário à vista. E o que falta de acontecimentos aos contos de Schulz, preponderantemente descritivos, sobra à prosa de Schulz: a rigor, a prosa de Schulz é o único acontecimento. Porque é através dela que vemos nascer um mundo comovente e exuberante criado, via observação, a partir do nada de uma vida monótona qualquer, bem conforme a teoria cosmogônica do pai já endoidecido, segundo a qual haveria no interior de todas as coisas sem valor uma riqueza infinita à espera de ser criada pelos homens: “O Demiurgos apaixonava-se por materiais requintados, perfeitos e sofisticados — nós damos preferência ao barato”. Não por acaso Schulz pertencia ao povo que, conforme uma vez disse Jean Bottéro, tinha por hábito transfigurar minúsculos acidentes familiares acontecidos às margens de um deserto em eventos de implicações cósmicas imensuráveis. Um hábito que, em todo caso, muito longe de ser uma exclusividade judaica, é na verdade próprio do pensamento mítico, do qual a prosa de Schulz haure toda a força.

Breves notas sobre o português medieval a partir da leitura do Cancioneiro de Dom Dinis

No português medieval, “senhor” era substantivo comum de dois gêneros. O senhor, a senhor. A Virgem, por exemplo, era a “Senhor das senhores”. Toda vez que penso nisso imagino o quanto a primeira pessoa que escreveu “senhora” deve ter sido xingada e acusada de já estar querendo acabar com a língua ainda recém-nascida.

Outras duas curiosidades: o uso de “tão muito” no sentido de “tanto”: alguém que recebeu tão muito sofrimento. E a possibilidade de intercalar o objeto no meio do “senão”. Nós dizemos: não me deu senão isso. Eles também podiam dizer: não me deu se isso não.

De acordo com os gramáticos, é um erro a utilização da ênclise no futuro do presente e no futuro do pretérito. Nesses tempos verbais, devemos optar entre a próclise e a mesóclise. Mas nem sempre foi assim. E no português medieval eles também podiam dizer e diziam: “direi-vos”, “teria-se”.

Nesse português, o verbo haver ainda não se grafava com h. Com isso, a terceira pessoa do singular do verbo aver, no presente do indicativo, era indistinguível da preposição “a”. De modo que o erro “Isto aconteceu a muito tempo” era justamente o correto no século XIII.

O segredo de Machado

Toda vez que olhamos para Machado sem ser através dos romances e dos contos da velhice vamos encontrar o Machado comedido, cumpridor, adequado, adepto fiel de valores para nós já tão defasados. Não é nas cartas, nem nos poemas, nem nas críticas, nem nas crônicas, nem mesmo nos primeiros contos e romances, mas na ficção que começa a escrever a partir de Memórias Póstumas, que Machado supera todas essas acomodações pessoais a seu tempo e lugar e se apresenta como próximo de nós, em vários aspectos bem mais próximo de nós do que muitos de nossos modernistas. O segredo de Machado, portanto, não estava no gênio da sua pessoa, a qual, muito longe de transfigurar tudo em que tocava, podia ser tão convencional a ponto de participar da criação de uma Academia Brasileira de Letras, mas na concepção de arte a que, ao fim de muita pesquisa, aderiu e praticou, essa sim tão significativa para nós porque intimamente ligada ao cerne da crise que está na origem do homem e do mundo modernos.

A literatura e os riscos

Tanto a história narrada na Ilíada quanto a história narrada na Odisseia, dois dos poemas mais extensos já contados, poderiam ter acabado antes mesmo de começar, caso Páris não tivesse sido salvo no duelo com Menelau e os companheiros de Odisseu não tivessem liberado os ventos já quase em Ítaca. A solução rápida dos problemas, tudo o que mais queremos na vida, é sempre um grande risco que a literatura corre.

Primeiro ideal de nobreza

A infantilidade na base da discussão entre Agamenon e Aquiles, na abertura da Ilíada. O primeiro não aceita ficar no prejuízo, nem que para isso tenha que tomar o prêmio de alguém. Aquiles, ao ter o prêmio tomado por Agamenon, vai chorando fazer queixa à mãe. No primeiro ideal de nobreza, a criança mimada.

A literatura e as vidas suspenas

A literatura com a qual nos habituamos é cheia, entre autores e personagens, de vidas suspensas por um, dois ou mais anos, ora por guerras, ora por perseguições políticas, ora por doenças, ora por diversos outros fatores alheios a suas vontades, em trincheiras, subterrâneos, prisões, sanatórios, navios, casas, quartos, camas. E tudo isso, que tomávamos apenas como coisas de outras épocas, em meio às quais tínhamos de garimpar o que pudesse dizer respeito a nossa vida plena, autônoma, desimpedida, acima de qualquer obstáculo, começa a ter para nós, pela primeira vez, um sentido que não poderíamos desconfiar. Alguém comentou que passamos por algo que pode tornar anacrônica toda a literatura contemporânea escrita até mês passado. Mas que também nos pode aproximar como nunca, até a identificação, de autores e de obras que nos interessavam apesar da distância, de repente desfeita.

Bentinho às avessas

Enquanto o Bento Santiago de Machado de Assis repassa toda a vida em busca dos menores indícios que reforcem o caráter duvidoso de Capitu e assim deem peso a sua acusação de adultério contra a esposa, baseada na semelhança do filho do casal com o melhor amigo do marido, Andreas Thameyer — personagem autor de uma carta pré-suicídio que é um dos contos de Arthur Schnitzler, intitulado justamente A última carta de Andreas Thameyer — é um Bentinho às avessas que, munindo-se pela pesquisa erudita de vários casos registrados, ao longo da história da curiosidade humana e da ciência, de mulheres que tiveram filhos semelhantes não aos pais biológicos, mas a pessoas e a objetos que as impressionaram fortemente durante a gravidez, defende até o próprio fim, contra todas as evidências, a fidelidade da mulher que, igualmente branca como ele, havia acabado de dar à luz um filhinho preto. Ambos os textos, Dom Casmurro e A última carta, são de 1900.

Joseph Roth e a tragédia

Enquanto lia de Joseph Roth fui procurando o que há nele dos mecanismos da tragédia. Se começamos pelos homens e pelos atos que a tragédia deve imitar (homens elevados e mais ou menos virtuosos), em contraposição aos homens baixos e viciosos da comédia, Joseph Roth de certa forma burla a exigência clássica por meio da inversão judaico-cristã, aquela tão combatida por Nietzsche: Mendel Singer é um pobre coitado, sim, mas cuja dignidade repousa na obediência a Deus; desse outro ponto de vista, o critério já não é mais humano, e sim espiritual. Nisso, Joseph Roth segue os autores hebreus da Bíblia, os quais, segundo Auerbach no famoso ensaio de abertura de Mimese, eram capazes de conferir caráter elevado e trágico a pessoas comuns em circunstâncias nada especiais, algo impossível aos gregos. Partindo-se daí, a hybris que leva ao infortúnio do herói, no caso de Mendel Singer (que de certo modo vivia conformado com suas agruras), é a mudança ambiciosa para a América, na qual este deixa para trás o filho mais novo e mais necessitado, grave pecado contra o dever paternal, ainda mais pela desconsideração à profecia rabínica. Então a narração prossegue de catástrofe em catástrofe até que, por fim, conforme a prescrição aristotélica — embora não totalmente, uma vez que o grego preferisse as reviravoltas que iam da dita para a desdita, enquanto o Jó de Roth, como o Jó bíblico, passa da infelicidade para a felicidade —, opera-se a uma só vez o reconhecimento e a peripécia, a mudança da sorte do herói mediante uma revelação, para piedade dos leitores.

Selvagens, marinheiros, funcionários

Algumas das principais narrativas de Melville consistem na história de um grupo de homens isolados em determinado ambiente. Em Taipi, esses homens estão isolados numa ilha; em Moby Dick ou Billy Budd, em navios; em Bartleby, num escritório. Na ilha, os primitivos; nos navios, os marinheiros; no escritório, os funcionários. Mas, se Melville encontra nos primitivos aquela síntese montaigniana de bom selvagem e ideal clássico de nobreza, e nos marujos o heroísmo possível mesmo aos homens mais baixos, aparentemente não sobra nada para o proletário urbano, cuja única alternativa possível é a recusa apática. De algum modo, Billy Budd e Bartleby são figuras análogas e sofrem, em seus respectivos contextos, o mesmo tipo de admiração e repulsa, atração e ódio, por parte de seus superiores, Claggart e o narrador dono do escritório, e em decorrência da relação mal-sucedida com eles acabam alvos da justiça. Como Billy Budd pertence ainda ao mundo heroico do mar, termina com uma morte trágica, significativa; como o mundo de Bartlety é o mundo sem vida das “cidades de Caim”, definha de fome entre os muros de uma prisão.