15.5.20

Metáforas náuticas

Os poetas nos familiarizaram tanto com as metáforas náuticas, que já qualquer lugar comum da experiência naval nos parece carregado de sentido. Uma vez li que entre os agravantes de uma tempestade está a proximidade com a costa, devido ao risco de acabar-se lançado contra as coisas. Outra notícia que nunca esqueci é como, por piores que sejam as ondas, a coisa mantém-se ainda possível enquanto elas têm uma só direção, e que muito mais fatal é o estrago causado pelo choque entre ondas que chegam de direções contrárias.

Diários da Descoberta da América, Cristóvão Colombo





















É muito significativo que o primeiro europeu a pisar em solo sul-americano não apenas planejava chegar a outro lugar, como acreditou que estava nesse outro lugar o tempo inteiro em que esteve aqui. Desde o primeiro momento a nossa parte das Américas parece condenada a não mais existir por e para si. Seja como for, esse europeu — mescla de doido, místico e charlatão — foi, segundo o juízo mais benevolente, uma espécie de Quixote avant la lettre. Havia lido tantos relatos antigos de viagem ao Oriente, que também queria sair e realizar a própria, mesmo contra o descrédito de todos. Vivia tão alucinado por essas leituras, que enxergava a realidade por meio delas, imune a qualquer prova em contrário. O que poderia a disposição geográfica do globo terrestre contra a força da cartografia fantástica de seus estudos? (Aliás, como não chorar com o mapa de Toscanelli, pelo qual Colombo se guiava?) Se Aristóteles dizia que “este mundo é pequeno e a porção de água é muito escassa”, então da Europa até o Oriente pelo Atlântico tinha de ser um pulo. Dessa forma, havendo planejado alcançar a Índia navegando rumo ao Poente (algo que os conhecimentos náuticos da época já suspeitavam não ser possível), Colombo chega às ilhas do Caribe acreditando estar em Cipango, o Japão, portanto muito próximo de realizar o sonho de encontrar o Grande Cã. Então o testemunhamos, ao longo do diário, enxergar Cipango na ilha de Cuba da mesmíssima forma que, um século depois, Cervantes imaginará o Quixote enxergando gigantes em moinhos de vento, donzelas em meretrizes, e assim por diante. Não satisfeito, à medida que a confiança e os favores da coroa espanhola diminuem, Colombo não apenas mantém a inabalável certeza de seu feito, como o encarece ainda mais. Porque, se regressou da primeira viagem afirmando ter chegado aos confins do Oriente, as viagens seguintes (ao todo foram quatro) o tornaram convicto de ter achado nada menos que a localização geográfica do Paraíso, perdida desde a expulsão de Adão e Eva, e não apenas isso, mas também a fonte de todo o ouro do Oriente, do qual davam notícia tanto as Sagradas Escrituras quanto a segunda Bíblia que tinha, o livro de Marco Polo.

11.5.20

Duas associações indevidas

Um mal-entendido na chegada dos portugueses à Índia, talvez determinante na relação dos colonizadores com os nativos do Brasil: a confusão auditiva entre Krishna/Cristo, que fez alguns da esquadra considerarem a região dividida entre cristãos indianos e mouros islâmicos. Quando, poucos anos depois, chegam ao Brasil (o Bartolomeu Dias que chega com Cabral ao Brasil havia chegado com Vasco da Gama a Calicute) e não deparam a mesma religião encontrada na Índia, com templos, imagens, sacerdotes, logo cogitam a degeneração dessa gente, já sem qualquer memória do cristianismo decerto aprendido no início com o apóstolo Tomé, segundo a tradição o evangelizador dos indianos. Partindo dessas duas associações — entre índios e indianos, entre religião indiana e algum tipo de cristianismo —, os primeiros colonizadores do Brasil só conseguirão enxergar, no contraste com as notícias recebidas da Índia, aquilo que faltava aos indígenas, ou melhor, aquilo que os indígenas haviam perdido. De modo que, se a outros ocorria especular quanto à natureza primitiva dos habitantes do Novo Mundo, isto é, sua maior proximidade aos estágios iniciais da humanidade, aos portugueses só era possível enxergar neles a inconstância, a decadência, o embrutecimento.

9.5.20

Lutero

O Lutero antissemita (o melhor jeito de batizar um judeu é amarrar-lhe uma pedra ao pescoço e lançá-lo de sobre uma ponte); anticapitalista (o agricultor que torna sua produção inacessível aos pobres por causa do preço é um assassino); filovegetariano (os animais foram criados para a glória de Deus; para nossa alimentação existem as plantas, razão por que Adão e Eva jamais comeram carne no Paraíso); o Lutero frugal, meio primitivista (o Paraíso não foi um jardim das delícias, mas um lugar pobre, precário, singelo; Adão e Eva quase como dois bons selvagens de tanga no meio do mato); o primeiro fundamentalista (uma mentira contada pela Bíblia não pode não ser verdade); o Lutero que troca o monge pelo burguês como ideal ascético (neste mundo, o maior desafio para o cristão é ser um bom profissional, um bom vizinho, bom pai de família); o Lutero obcecado pelo Diabo e por sua encarnação terrena, o Anticristo; o Lutero terapeuta, consolador das almas atormentadas, reconhecedor do abismo entre o que se acredita ser e o que se é de fato; o Lutero anti-humanista (quanto melhor uma pessoa, pior ela é, por causa da ilusão de mérito); do indivíduo fatalizado perante o insondável tribunal divino, totalmente à mercê do divino juiz (aos homens, é suficiente que se arrependam do pecado, com o pequeno complicador de que ninguém é capaz de se arrepender por conta própria, uma vez que o arrependimento é um efeito da salvação divina, não o contrário, de modo que só é absolvido por Deus quem Deus quer), o que faz de Kafka uma espécie de luterano sem esperança, crente perplexo predestinado à perdição; o Lutero teórico da tradução, também o das metáforas estapafúrdias (Cristo é a minhoca que Deus pôs no anzol pra pescar o Diabo, a Bíblia é a placenta dentro da qual a Igreja tem tudo que necessita pra viver, interpretar a Bíblia é coar o leite através do saco de carvão), etc.

Escrita, esquecimento, memória

A escrita não nasceu a serviço da memória das coisas que não mereciam ser esquecidas (os mitos, as lendas, as genealogias), mas a serviço das coisas que não podiam ser esquecidas sem merecerem ser lembradas (inventários, transações comerciais).

Reforma religiosa e reforma linguística

Foi sempre tão estreita a relação entre as religiões e a fixidez das línguas (sempre ouvi dizer que foi o zelo religioso dos hindus com suas escrituras sagradas que deu origem à gramática): as antigas religiões indianas e o sânscrito, o judaísmo e o hebraico, o cristianismo e o latim... De tal modo que nunca pôde haver reforma religiosa que não levasse também a uma revalorização linguística: os sermões de Buda sacralizam o dialeto indiano mais baixo; a mensagem de Cristo é toda ela divulgada em grego comum; os pais da igreja escrevem, e portanto elevam a outro nível, o sermo humilis dos romanos; as traduções do Lutero camponês formatam o alemão moderno... Talvez não sejam as novas crenças religiosas que, popularizadas, subvertem a escala de valores do universo linguístico a que pertencem; talvez, ao contrário, seja a ascensão das formas baixas de dizer que, fazendo caminho pela pregação desses reformadores, confrontem as crenças estabelecidas com as crenças novas que carregam em si.

A história da humanidade conforme contada pelos assassinos

Chesterton dizia que até mesmo os ladrões reforçam a ideia de propriedade, uma vez que não querem mais do que transformar a propriedade dos outros em própria. De modo parecido, nenhum assassino jamais ataca o direito dos inocentes à vida, mas até o fortalece na medida em que recoloca em discussão os critérios dessa inocência, para cada um deles algo sempre muito particular. Enquanto as pessoas celebram a morte de alguém que o Estado apresenta como merecedor de morrer, cada assassino executa ele mesmo a morte de qualquer um cujo merecimento ele assegura sem necessidade alguma de endosso do Estado. Desse ponto de vista, todo assassino é só alguém livre o suficiente para não se submeter a essa violência que é o monopólio do Estado na determinação de quem merece ou não merece morrer, alguém ainda humano o bastante para não se contentar com a transferência do derramamento de sangue para distantes e impessoais “agentes da justiça”. Na história da humanidade, conforme contada apenas por assassinos, nunca nenhum inocente jamais foi morto.

Lucro e prejuízo

Um antigo príncipe chinês tinha tanta consideração pela vida, que gostava de celebrar o Ano Novo dando liberdade a todos os animais cativos dentro de seus domínios. Como forma de incentivar a benevolência dos súditos, o príncipe oferecia certa quantia por cada animal libertado. O resultado foi que a população passou a aprisioná-los em muito maior número ao longo do ano. Algo semelhante aconteceu em realidade bem mais próxima à nossa, como as campanhas sanitaristas do século XIX. Lutando pelo controle da população de ratos nos centros urbanos, as autoridades tiveram a ideia de oferecer recompensa por cada rato apresentado morto. Dessa vez o resultado foi que logo as pessoas passaram a criá-los no quintal de casa... A grande lição desses episódios — pelo menos segundo uma leitura taoísta — é como toda ação também produz necessariamente o resultado contrário ao pretendido. Até por isso faz muito sentido que ambos os casos, separados por milênios, tenham em comum justamente serem determinados pela mesma lógica do lucro, talvez a coisa desde sempre mais inseparável do prejuízo.

O velho Rousseau, novo Adão

Enquanto se queixa, na velhice, do ostracismo ao qual havia sido lançado pelos adversários, Rousseau pensa em formas de ocupar os dias, agora vazios de vida social. Prontamente descarta a investigação dos astros, uma vez que estão distantes e a ele só pode interessar aquilo a seu alcance. Descarta, logo em seguida, a pesquisa dos reinos mineral e animal, ambos pelo mesmo repugnante motivo: a necessidade de se aprofundar e remexer nas entranhas ora da terra, ora dos bichos, uma violência da qual não era capaz. Por exclusão, vê-se diante das plantas, que, se aos demais interessam apenas à medida de suas propriedades médicas, a ele agradam apenas pelo que são, em seus aspectos e conformações. E, assim, como quem não quer nada, o velho Rousseau acaba por se apresentar aos leitores como um novo Adão, cujo fim de vida igualmente se resume a caminhar por entre jardins, solitário, desconhecedor da violência do trabalho, enquanto apenas obversa e dá o devido nome às coisas.

Escrita e burocracia divina

Uma vez que o âmbito religioso foi o último a incorporar a escrita — nascida como ferramenta burocrática e comercial —, é claro que um Deus tão ligado a ela como o dos nossos monoteísmos não poderia se apresentar como outra coisa que um legislador, para quem, além do mais, é preciso registrar minuciosamente todas as perdas e ganhos que cada uma de suas criaturas vai adquirindo junto a ele, para afinal ter contabilizado o respectivo saldo, positivo ou negativo. Não é estranho que um Deus que escreve apareça desde o início ocupado com aquilo para o que a escrita foi originalmente inventada.

Os Patriarcas

Um irmão que mata o outro irmão; as filhas que engravidam do pai; a esposa que oferece outra mulher ao próprio marido; o pai que na última hora desiste de matar um dos filhos, depois de já ter abandonado o outro à própria sorte; o irmão que trapaceia o irmão; a mãe que ajuda um filho a enganar o outro filho; o filho que, com o auxílio da mãe, engana o pai já velho à beira da morte; o tio que engana e explora o sobrinho, que depois dá o troco ao tio e sequestra as primas; a nora que engravida do sogro; o irmão que é vendido pelos irmãos... E tudo isso, de acordo com o Gênesis, numa única família.

Assim como Paul Johnson escreveu um livro contra a influência das ideias progressistas contando fofocas a respeito de seus autores, e o chamou Os Intelectuais, imaginei um outro, nos mesmos moldes, contra as prerrogativas do monoteísmo abraâmico, intitulado Os Patriarcas...

Porque, se gregos e latinos gostavam de uma carnificina (donde os poemas épicos), os hebreus tinham clara preferência pela confusão entre parentes, o que faz do Gênesis um precursor desses programas dedicados à exposição de escândalos familiares. O autor de As Metamorfoses está para o José Luiz Datena do Cidade Alerta como o autor do Gênesis está para o Ratinho do Teste de DNA...

Inclusive, pode até ser que seja a isso a que as pessoas se referem quando falam em “civilização greco-judaico-cristã”: o encontro dessas duas preferências (sangue e vexame) na mesma grade de TV.

O marinheiro que perdeu as graças do mar, Yukio Mishima





















O marinheiro que perdeu as graças do mar é uma dessas leituras que, apesar de todas as qualidades, beiram o limite do insuportável. Mas não pelo que há, no livro, de propositalmente incômodo (o filho que espia a vida sexual da mãe, o gatinho esfolado por um grupo de crianças, as mesmas que mais tarde planejam friamente um assassinato, etc.), e sim porque é impossível amar as personagens que o narrador não consegue esconder que ama e deixar de amar as personagens que o narrador não consegue esconder que despreza; e sim porque as personagens que encarnam a defesa dos grandes valores heroicos e sobre-humanos tão caros ao narrador são simplesmente as figuras mais insuportáveis da literatura em todos os tempos (o filho Noboru e o chefe sem nome da gangue infantil), enquanto o nosso real interesse só pode repousar sobre a dupla (Fusako e Ryuji) que dá motivo a todas as recriminações (nesse caso, apropriadamente infantis) à conformidade, à desistência, à rendição próprias da vida, simbolizadas pelo abandono das despedidas impostas pela vida no mar em nome dos compromissos de quem vive em terra firme. Ou talvez seja um exagero enorme de minha parte, uma verdadeira injustiça, e a relação do narrador com as personagens em questão seja muito mais ambígua do que, com certa raiva, dou a entender: um misto mal resolvido de piedade e desprezo pelas partes envolvidas. Talvez...

Viagens de Gulliver, Jonathan Swift





















A rigor, o que são algumas das obras mais influentes da literatura (o Dom Quixote, o Tristram Shandy, o Lemuel Gulliver, entre outras), senão piadas que os autores acharam tão boas que levaram o mais longe que puderam? Piadas que os leitores começam a ler à gargalhada e, só ao irem percebendo que não acabam, passam a ficar meio aflitos, contando as páginas que faltam pelo menos para o fim do capítulo? Um Tristram Shandy não pode ser recontado sem deixar de existir, por outro lado é muito compreensível que se tenha o hábito de fazer adaptações infantis de livros tão cheios de interesse, mas completamente desmedidos como os de Cervantes e de Swift. Outra aproximação entre eles se deve a que as viagens de Gulliver estão para os livros de viagem marítima dos séculos XVI e XVII como as desventuras do Quixote estavam para as novelas de cavalaria que o precederam: duas grandes zoações/homenagens, escritas por leitores familiarizados com o gênero. Porque, além de brincar com a inclinação desses viajantes ao exagero e mesmo à invenção pura, há no fundo da obra certo relativismo decorrente do contato com as notícias etnográficas trazidas por esses textos. Em termos filosóficos, todos os episódios, por levianos ou engraçados que pareçam, propõem uma relativização cultural muito séria, o que em Swift não apenas não ameniza a intransigência contra seus conterrâneos, como a acentua: Gulliver volta do impronunciável país dos Houyhnhnms, cuja existência consiste na inversão de perspectiva entre as espécies humana e animal, sem sequer tolerar o aspecto e o cheiro da própria família, dos ingleses em geral. Outra fonte desse perspectivismo, em Swift, é de natureza científica: Gulliver é um médico, um cirurgião, e fica evidente na origem de algumas ideias — principalmente nas duas primeiras partes do livro, que se espelham, e também na terceira, com o pendor astronômico dos laputianos — a influência dos instrumentos ópticos (microscópios, telescópios), que então devem ter sofrido aperfeiçoamentos significativos. Porém, de todas as características do livro, talvez a mais considerável seja o começo, ali, da gratuidade que algumas vezes a imaginação de Swift alcança, isentando-se do compromisso da sátira alegórica com a realidade do autor. Embora Swift estivesse ainda preso a esse esquema, tão caro ao modo de pensar do século XVII, e ainda estivesse muito longe de uma imaginação plenamente liberta e aleatória como a de um Lewis Carroll, há vários lances em que o satirista cochila e a imaginação se diverte sozinha, imaginando absurdos só pelo prazer de imaginá-los. É justamente esse o aspecto mais fácil da obra, o aspecto que chegou a nós em tantos filmes de Sessão da Tarde envolvendo pessoas encolhidas ou agigantadas e bichos falantes.

3.5.20

Romance e paródia

A relação do romance com a paródia é tão estreita, que talvez seja possível até assinalar em cada época o tipo de texto, então mais prestigioso ou em voga, que os romancistas parodiavam. No XVII, Cervantes parodia as novelas de cavalaria; na virada do XVII para o XVIII, Defoe e Swift parodiam os relatos de de viagem marítima e naufrágios, e também já os panfletos e as reportagens; no século XVIII francês os textos parodiados são os contos orientais recém-traduzidos; o XIX começa parodiando a troca de cartas e termina com a paródia das monografias médicas sobre a psicologia e o comportamento humanos. A grande paródia do século XX foi a da própria literatura, ou de repente do ensaio. Muito embora Sterne parodie o próprio romance já no século XVIII e Carlyle parodie o ensaio já no início do XIX. 

2.5.20

A prioridade daquele que vem depois

Há no Gênesis — um dos textos a que mais volto na vida — muitas reincidências, dentre as quais a seguinte: a disputa entre irmãos (por vezes gêmeos, mas nem sempre) pela preferência paterna, que de maneira intrigante recai sempre sobre os mais novos, em detrimento da prioridade natural dos mais velhos. Do início ao fim do livro — isto é, dos filhos de Adão aos filhos de José —, repete-se a vitória tumultuadora dos mais novos: Caim e Abel; Ismael e Isaque; Esaú e Jacó; Zara e Farés (gêmeos como Esaú e Jacó, tal como aqueles começam a competir ainda no ventre da mãe, já na hora do parto); Manassés e Efraim (os quais recebem do avô Jacó uma benção absurda, conferida com as mãos cruzadas, para que a mão direita pousasse sobre a cabeça do mais novo, naturalmente posto na direção da mão secundária, a mão esquerda)... Pensando nessa insistência pelo mais novo, pelo menor, pelo sem direito, parece estranho que o Cristo, para quem também “os últimos serão os primeiros”, “os humilhados serão exaltados”, tenha sido não o filho mais novo de Maria, mas justamente o primeiro, se não mesmo seu único filho (a depender da tradição), tal como, da parte de Deus, era desde o princípio o “primogênito de toda criação”, o “unigênito do Pai”, o Filho Único por excelência... Talvez por isso a importância de uma figura como João Batista, o precursor que anuncia a prioridade do que vem depois...

A impotência perante as coisas

Para nós, é muito importante que esse vírus tenha sido feito em um laboratório chinês, e não apenas por conveniência ideológica contra o "comunismo", mas principalmente porque isso nos dá a ideia de que, então, não estamos à mercê da natureza e tudo poderia ser evitado. Não estarmos entre as causas de uma catástrofe qualquer significa que nada poderíamos fazer para impedi-la. E nada nos aterroriza mais, como espécie, do que essa impotência perante as coisas, nem sequer a culpa. Por isso, mesmo na falta de deuses a serem apaziguados, continuamos sem outra maneira de viver que não seja sob as implicações cósmicas de nossos atos, exigindo que todas as dores que sofremos derivem das consequências de nossos atos.

A maneira correta de roubar

Lie Tsé conta a história de um homem pobre que foi até um rico perguntar qual havia sido o caminho para a riqueza. O rico lhe respondeu que havia acumulado riqueza roubando. A partir desse testemunho, o pobre começou a pular muros e a invadir casas. Algum tempo depois, acabou preso. Confuso com o fracasso do método, voltou a procurar o rico assim que lhe foi possível. Este então lhe explicou que o pobre havia sido preso porque estava roubando errado, e que o jeito correto e bem reputado de roubar, utilizado com sucesso por ele e por outros ricos, era diferente, e consistia na verdade em cercar um pedaço grande de terra e chamar de seu, depois juntar um punhado grande de animais e chamar de seu, chamar de seu também os rios que porventura existam nesse pedaço de terra, e também os peixes que vivem dentro desse rio, e assim por diante com a madeira das árvores, e a pele dos animais, e com o que há de valor enterrado no chão, etc.

Sonho vingativo

A história de Noé, que escapa de perecer com todos os seres em terra firme flutuando num barco à deriva sobre as águas, só pode ser o sonho vingativo de algum náufrago.

Último refúgio do profetismo

A epidemiologia, o último refúgio do profetismo. Tal como os antigos profetas de Israel, o epidemiologista se apresenta e anuncia a catástrofe que se aproxima. Uma catástrofe da qual sempre só é possível escapar com uma condição, que é lhe dar ouvido. O profeta antigo chamava ao arrependimento, o atual chama a não sair de casa, aliás ao melhor estilo pascoal, com a Morte lá fora, passando em frente à casa das pessoas. Outra semelhança é que, então como agora, não faltam os desacreditadores e a acusação de alarmismo, oportunismo, sabotagem.

Vida aglomerada de inseto

Segundo George Grosz, em Um pequeno sim e um grande não, sentimos falta é da nossa vida aglomerada de inseto:
Toda vez que me vejo no meio de uma multidão, penso em insetos. Não sou o primeiro a observar a semelhança, mas levo um susto sempre que confirmo essa impressão. Uma recepção oficial é um exemplo de um mundo de insetos que se debatem entre si — os vestidos enormes das mulheres têm as cores brilhantes das asas dos besouros e os homens de fraque parecem besouros pretos que passeiam pelo esterco. Diante dos bufês sempre cheios, as pessoas devoram a comida como se fossem insetos. Misteriosamente, ninguém consegue manter-se à margem, a pessoa é levada, empurrada a se comportar subitamente como um besouro faminto, seguindo o exemplo das outras pessoas presentes.

O sofá, Crébillon Fils

As Mil e Uma Noites deviam ter acabado de chegar, de modo que a grande moda literária era o orientalismo: escritores franceses satirizando a vida na França por meio de histórias passadas na Pérsia, na Índia, na Babilônia. Outra tendência filosófica e literária da época era a libertinagem. O sofá, de Crébillon Fils, é uma junção das duas. Um sultão muçulmano, homem de bem poucos méritos cujo único interesse real na vida são os contos (era maravilhosamente considerado o maior conhecedor que já houve de acontecimentos jamais ocorridos), elege um servidor hindu para que lhe conte novas histórias. Este começa dizendo que uma das crenças fundamentais de sua religião é a transmigração das almas, razão por que ele anteriormente havia sido, em decorrência de uma existência mal vivida, um sofá. Quer dizer, não apenas um, já que sua alma podia passar de um sofá para outro, o que lhe concedia certa mobilidade. A partir daí esse servo, de nome Amanzei, começa a narrar tudo aquilo que, em diversas alcovas, testemunhou acontecer sobre si. Apesar da leviandade aparente do tema, a leitura não chega a ser das mais fáceis muito porque a prática amorosa do período era muito complicada e envolvia uma série de dificuldades para nós bastante incompreensíveis (nessas horas dá muito para entender como do meio daquele emaranhado todo brota um Sade), além de que, por isso mesmo, todas as narrativas são feitas na base da mais sutil alusão, de modo que é quase como estarmos o tempo inteiro olhando para um quadro cujo interesse é deixado pelo pintor fora da tela (até por isso nada faz menos justiça ao livro do que as capas das duas edições lançadas pela L&PM, absolutamente inapropriadas). Porém, uma coisa que a meu ver acabou mais relevante do que as próprias histórias contadas pelo antigo Sofá, pelo menos para nós que não temos mais a vida sexual assim tão codificada, é o fato de essas histórias, no livro, serem narradas para o sultão e a sultana, que tomam diversas vezes a liberdade de interromper Amanzei para comentar ou discutir situações e diálogos, expondo incredulidade, dúvida, por vezes a mais pura insatisfação. Por que os contos não podiam ser feitos só de coisas interessantes, o sultão pergunta. Porque para que algo seja interessante é preciso ser precedido de muita coisa banal, responde a sultana. As intromissões impertinentes do sultão viraram por acaso esses momentos de interesse. Diante delas, o narrador negocia, insiste, cede, ignora. Alega que teria prazer em modificar a história para o maior agrado do sultão, não fosse o compromisso com o que viu e ouviu, etc. Mais até do que serem histórias narradas desde a perspectiva inusitada de um sofá, são essas pequenas discussões metanarrativas a verdadeira graça que o livro não perdeu (ou adquiriu) com o tempo, e que justamente inserem Crébillon na linha tão pouco ortodoxa de outros narradores do mesmo século XVIII, período que viu alguns dos romances menos convencionais de sempre, a começar pelo Tristram Shandy do Sterne, o pai de todos, mas também o Jacques do Diderot e a viagem do Xavier de Maistre ao redor do quarto.