31.3.14

“Objectos do mundo”

... dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo.

(Herberto Helder)

Irmãos de dor

Imaginem a cara que não fiz ao tomar conhecimento de que Anna Akhmátova — a mulher de perfil triste mas forte — verteu para o russo um poema de ninguém menos que Antero de Quental. Quer dizer então que ela sabia português?! Não, de fato não sabia, tendo por isso trabalhado sobre uma tradução justalinear feita por outrem. O que não deixa de ser significativo, e não deixa de fazer todo sentido: ninguém cantou o sofrimento de forma tão constante e sublime quanto os dois. O poema em questão chama-se “Zara”, na verdade um epitáfio escrito para o túmulo da menina que dá nome à peça, irmãzinha de um amigo, — poema o qual Antero preferia que nem fosse publicado, mas permanecesse reservado à lápide, só ao alcance de parentes e amigos da família.
ZARA
Feliz de quem passou, por entre a mágoa
E as paixões da existência tumultuosa,
Inconsciente, como passa a rosa,
E leve, como a sombra sobre a água.
Era-te a vida um sonho. Indefinido
E tênue, mas suave e transparente...
Acordaste... sorriste... e vagamente
Continuaste o sonho interrompido.

26.3.14

Uma suspeita

Eu não gosto de crianças, nem de adolescentes, nem de jovens, nem de idosos. Suspeito que gostaria muito dos adultos, caso existissem.

22.3.14

Perfeito

São tantos os problemas que, pra quem nasceu pra reclamar, nunca houve tempo tão perfeito.

21.3.14

“Roubar com muito”

Do “Sermão do bom ladrão”, de Antônio Vieira, que com isso quase se redime:
Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém ele que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, senhor, que eu porque roubo em uma barca sou ladrão, e vós porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres.

18.3.14

Conde de Bonfim

As janelas repousam sobre a fachada dos prédios como pombos sobre a rede elétrica. 

Melhor dos casos

No melhor dos casos, o professor é um picareta que começou a ensinar mesmo antes de acabar de aprender. 

Profecia

Passarão os céus e a terra, a tua graduação porém não terá fim. 

Impaciência

TROCA DE PNEU

Sento-me à beira da estrada.
O motorista troca o pneu.
Não quero estar lá, de onde venho.
Não quero estar lá, aonde vou.
Por que assisto à troca do pneu
com impaciência?

(Bertold Brecht, trad. Ricardo Domeneck. Poema que me lembra isto.)

15.3.14

“Os tiros dos combates”

Gregório de Matos, num dos raros momentos de folga à cretinice, sobre a dissimulação, tão cara ao XVII e tão caluniada a partir do XIX:
Largo em sentir, em respirar sucinto,
Peno e calo, tão fino e tão atento,
Que fazendo disfarce do tormento
Mostro que o não padeço, e sei que o sinto.
O mal, que fora encubro, ou que desminto,
Dentro no coração é que o sustento,
Com que para penar é sentimento,
Para não se entender é labirinto.

Ninguém sufoca a voz nos seus retiros;
Da tempestade é o estrondo efeito:
Lá tem ecos a terra, o mar suspiros.
Mas oh! do meu segredo alto conceito!
Pois não me chegam a vir à boca os tiros
Dos combates que vão dentro no peito.

Miramar

























Os temporais de Alexandria. A voz do vento nas janelas. O céu com suas nuvens  obsessivamente lembradas. O Mediterrâneo quebrando sobre a beira-mar. A volta para casa já ao fim da vida. O reencontro com o passado. A decadência.

Mais a sabedoria do velho Amer Wagdi, tão protetor; o cinismo do acuado Tolba Marzuq, nunca antipático, por mais que tente; a beleza bruta e incultivada de Zohra, tão querida; a introversão de Mansur Bahi e seus dilemas, tão compreensíveis; o destino de Sarhan Al-Biheiri, tão merecido...

Um único episódio (o confuso desfecho dos transtornos causados pela presença de uma mulher como Zohra em meio a tantos homens), contado desde a perspectiva de alguns desses personagens, verdadeiramente inesquecíveis.

14.3.14

Madame

O que a diferençava da empregada era o salário do marido. 

Esforço

Tanto se esforçou para me convencer de que a maior prova de meu fracasso na vida era o seu convívio, que conseguiu. 

13.3.14

Cão vivo

O covarde morre mil vezes antes de morrer uns trinta anos depois do corajoso.

10.3.14

Escape

A única forma de escapar à inutilidade, para alguns, é afundar-se nela.

Temperamento

Segundo Henri Michaux, tudo para os europeus precisa terminar em tragédia, a tal ponto que se Cristo não tivesse acabado numa cruz, não tinha conseguido na Europa nem cem discípulos. 

7.3.14

Incoerências

Se é verdade que as incoerências que percebemos com mais facilidade são as alheias, a nenhuma justificamos tão prontamente quanto as nossas. 

3.3.14

“Eu”

EU

E vês a folha
que oscila
por um átimo
no ar agitado
sobre as cinzas
em brasa? —

(Carl Jóhan Jensen, trad. Luciano Dutra.)