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3.10.20

As autoridades cristãs de Montaigne

Os autores que Montaigne mais cita são os filósofos e os historiadores gregos e romanos: Plutarco, Sêneca, Platão, Cícero, Aristóteles, Suetônio, e por aí vai. Também cita muito os poetas latinos: Horácio, Juvenal, Virgílio, Ovidio, Lucrécio. Muito mais raramente Montaigne recorre a alguma autoridade cristã. E, quando o faz, é sempre a propósito de alguma coisa muito inesperada, esdrúxula até, quase absurda. Quando cita Santo Agostinho é para mostrá-lo afirmando o domínio da vontade sobre o corpo com o exemplo de um homem capaz de soltar sonoros gases intestinais a hora que bem entendesse. E corrobora o testemunho do santo com o de um célebre comentarista que sabia de alguém que, além disso, o fazia ainda no tom estipulado. Em outro ensaio, Montaigne apresenta São Tomás de Aquino afirmando que um dos motivos pelos quais as relações incestuosas são proibidas é que Deus não queria uma vinculação assim tão grande entre homem e mulher, o que inevitavelmente aconteceria em casais formados por pessoas tão próximas quanto parentes. Mais adiante, dá o exemplo de Santo Hilário, que, com medo de precisar casar a filha que gostaria de ver consagrada à vida religiosa, pede muito a Deus que a mate.

21.9.20

Novo Mundo, Américo Vespúcio


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Américo Vespúcio se diferencia dos demais cronistas do “descobrimento” por não ser um simples marinheiro como Hans Staden, nem um alucinado como Colombo, nem um padre como Thevet, nem um pastor calvinista como Léry, nem um propagandista da colonização portuguesa como Soares de Sousa, mas o mais próximo de um humanista que pisou ainda muito cedo nestas terras. É dessa educação literária que tira ele a certeza de que as Índias a que Colombo jurava ter chegado eram na verdade uma porção de terra desconhecida dos antigos e que, não se tratando de uma ilha, configurava um Mundus Novus. Esse Américo Vespúcio, que discute tecnicamente nas cartas as coordenadas astronômicas das viagens, afirma ter ido para a Espanha, de Florença, para ser um mercador; e que, após quatro anos de trabalho comercial, decidiu abandonar a busca sempre tão incerta de lucro pelo conhecimento dignificante das coisas ignotas. Essa circunstância pessoal explicaria a natureza econômica de dois comentários muito interessantes para os quais gostaria de atentar. Numa das cartas, Vespúcio diminui a circum-navegação portuguesa da África até as Índias, porque toda ela feita sem nunca se perder de vista a costa africana, o que, na avaliação do navegador florentino, tornava-a muito menos meritória do que qualquer viagem através do Atlântico, através do Desconhecido. A não ser por um aspecto: o econômico, ao qual infelizmente — segundo ele — então se dava importância excessiva. Vespúcio está dizendo que, mesmo sem nenhum achado imediatamente lucrativo, a chegada ao Novo Mundo teve mais valor do que a grande vitória comercial que chegar à Índia por mar deu a Portugal. Mas uma outra observação vespuciana acaba em contradição com o critério do heroísmo. Em outra carta, chama ele atenção para a total falta de motivação política e econômica das guerras entre os povos indígenas das costas brasileiras. De acordo com a observação de Vespúcio, os nativos estranhamente não lutavam nem pela aquisição de novos territórios, nem pelo aumento de riquezas, nem por nada que em geral leva os povos a lutarem entre si. As tribos inimigas enfrentavam-se até a morte de alguns e o aprisionamento de outros, e depois voltavam cada qual para a sua casa. E quando era de se esperar que Vespúcio louvasse a desconsideração econômica da guerra indígena, da mesma forma que louvou a desconsideração econômica das próprias viagens a este lado do Atlântico, o florentino saiu-se com uma queixa à “crueldade” desses povos, a qual estaria na base da gratuidade dessas guerras. Trata-se de um juízo tão inconsequente, que foi inevitável que Montaigne, no famoso ensaio que certamente teve como uma das fontes as cartas de Vespúcio, desfizesse a referida incoerência ao afirmar a nobreza da guerra indígena, absolutamente livre de causa tão espúria como o lucro.

25.4.20

Selvagens, marinheiros, funcionários

Algumas das principais narrativas de Melville consistem na história de um grupo de homens isolados em determinado ambiente. Em Taipi, esses homens estão isolados numa ilha; em Moby Dick ou Billy Budd, em navios; em Bartleby, num escritório. Na ilha, os primitivos; nos navios, os marinheiros; no escritório, os funcionários. Mas, se Melville encontra nos primitivos aquela síntese montaigniana de bom selvagem e ideal clássico de nobreza, e nos marujos o heroísmo possível mesmo aos homens mais baixos, aparentemente não sobra nada para o proletário urbano, cuja única alternativa possível é a recusa apática. De algum modo, Billy Budd e Bartleby são figuras análogas e sofrem, em seus respectivos contextos, o mesmo tipo de admiração e repulsa, atração e ódio, por parte de seus superiores, Claggart e o narrador dono do escritório, e em decorrência da relação mal-sucedida com eles acabam alvos da justiça. Como Billy Budd pertence ainda ao mundo heroico do mar, termina com uma morte trágica, significativa; como o mundo de Bartlety é o mundo sem vida das “cidades de Caim”, definha de fome entre os muros de uma prisão.