31.7.14

Sobra

Um dos argumentos de Jorge Luis Borges contra a “cor local” em literatura, a já famosa alegação de inexistência de camelos no Alcorão: — uma prova de que o Alcorão, livro árabe por excelência, foi realmente escrito por árabes: a completa ausência de camelos, os quais, se nele existissem, constituiriam indício de que o livro fora escrito antes por turistas querendo se passar por locais, ou falsários, ou nacionalistas. Uma observação que Borges afirma ter encontrado em Declínio e Queda do Império Romano, de Edward Gibbon, — muito embora eu duvide que este a tenha feito, uma vez que não apenas não falta camelo no Alcorão, como pode-se dizer que, em se tratando de um livro sobre o Dia do Juízo, até sobra.

30.7.14

“Igual a todos”

Também eu sou homem mortal, igual a todos,
filho do primeiro que a terra modelou,
cinzelado em carne, no ventre de uma mãe,
onde, por dez meses, no sangue me solidifiquei,
de viril semente e do prazer, companheiro do sono.
Ao nascer, também eu respirei o ar comum.
E, ao cair na terra que a todos recebe igualmente,
estreei minha voz chorando, igual a todos.
Criaram-me com mimo, entre cueiros.
Nenhum rei começou de outra maneira;
idêntica é a entrada de todos na vida, e a saída.

Livro da Sabedoria, 7:1-6.

Ordem

Eu sinceramente já não sei até que ponto uma ordem tão inconveniente a parcela tão majoritária da população vale mais do que a desordem. Quer dizer, a desordem incomoda quem não é incomodado pela ordem. Mas há muito mais gente a quem a mera ordem é um estorvo. E aqui me lembro da admiração de Montaigne ante o raciocínio dos tupinambás, os quais, ao verem na França tantos miseráveis vivendo ao pé de palácios, se espantaram de que aceitassem aquela condição e não se juntassem e ateassem fogo na propriedade daqueles que não se dispunham a compartilhar o que tinham.

27.7.14

E agora mais outra

Com a contribuição das redes sociais, as incoerências se tornaram para nós, de uma hora para outra, o que são os peixes naqueles trechos de rio em que, de tão numerosos, podem ser apanhados com a mão, quase às cegas; aqueles peixes que, durante a época de reprodução, pulam eles mesmos nos colos dos pescadores, que só precisam ficar ali, parados, com uma rede estendida. De repente vimos que todo mundo diz uma coisa e faz outra; todo mundo é incondicionalmente brando com as causas com que simpatiza e incondicionalmente severo com as de que não gosta; todo mundo busca justificar os erros a favor, enquanto condena sem negociação os equívocos contrários; todo mundo abomina a violência contra os seus, mas acha compreensível a própria violência contra os outros; todo mundo só enxerga o seu lado, enquanto acusa os outros de só enxergarem o deles... Numa tal proporção que, atônitos, sem saber o que fazer, ainda só conseguimos apontá-las: — Mais uma incoerência aqui! E agora mais outra!

26.7.14

Solução

A divindade de Cristo foi a Igreja se eximindo do Sermão do Monte. 

Basta fazer

Número considerável de problemas começa quando já não basta fazer — seja o que for. Além de fazer, é preciso agora que todos saibam que se fez. E não só que todos saibam que se fez, mas que não se escandalizem ao saber. E não só não se escandalizem ao saber, mas que antes o aprovem, e que o achem bonito, e que o queiram pros filhos...

Dois pesos

O partidário encontra sempre atenuantes. O “não é bem o que parece” inaceitável é só o dos outros.

23.7.14

Uma sombra

Do Livro da Sabedoria, deuterocanônico também chamado Sabedoria de Salomão:
Como o navio que singra as águas ondulosas
sem deixar rastro de sua travessia
nem, nas ondas, a esteira de sua quilha;
ou como o pássaro que voa pelos ares
sem deixar vestígios de seu curso —
o leve ar, fustigado pelas penas,
fendido pelo vigoroso silvo,
é aberto em estrada pelas asas,
sem que se veja sinal algum de sua rota;
ou como a flecha disparada para o alvo —
cicatriza num instante o ar ferido,
ignorando-se o rumo que tomou;
assim conosco: mal nascemos, já deixamos de existir.
Ou, como o mesmo autor resume em uma única frase: “A vida é a passagem de uma sombra.”

A surpresa

Contar o episódio me lembra que não sei o nome dele e que preciso um dia parar e perguntar. Mas o senhor que passa os dias numa das esquinas próximas aqui de casa, ora sentado sobre a base da bomba de gasolina de um lado da rua, ora numa cadeira dentro do canteiro destratado que fica no lado oposto — sempre observando os transeuntes, quando não está cochilando —, esse sujeito, cujo nome acabo de lembrar que não sei, deu de me cumprimentar todas as vezes que me via. Chegou a se tornar um hábito. Já atravesso a rua o procurando para o bom-dia ou boa-tarde do costume. E estávamos nisso havia um tempinho, até que outro dia aconteceu de eu passar pouco depois de lhe terem pago um lanche. Ia me preparando para o alô protocolar, de todas as vezes, quando veio a surpresa: “Está servido?”

11.7.14

O radicalismo como preguiça

Uma das reações mais tipicamente brasileiras a grandes problemas é a exigência por reset. É tão funda a marca de uma colonização desastrosa, suponho, que a reconstrução a partir do zero é fundamento para a solução retórica de tudo. Enquanto não pormos abaixo as coisas como elas são, e as recomeçarmos agora da forma correta, não tem jeito, vai ser sempre mais do mesmo. Mas com uma particularidade. Diferentemente de outros povos, o brasileiro só projeta o drástico, que é pra se dispensar do simples; só exige o inviável, que é pra não se ocupar do possível. Enquanto não puderem mudar rigorosamente todas as coisas, então que não se mexa por alto em nenhuma. Estão fartos de paliativos: agora, nada menos que a efetiva resolução dos problemas, muito mais profundos. Ou tudo, ou nada — em poucas palavras. E optam por nada. 

9.7.14

A culpa

Scolari preferiu afundar a barca toda, ver o time inteiro humilhado ao fim do primeiro tempo, a admitir prontamente seu equívoco e a consertá-lo o quanto antes, ainda no início da primeira etapa, com a mera substituição de um ou dois jogadores, que então se tornariam os bodes expiatórios da derrota, em todo caso bem menos vexatória do que foi: se não me engano, foram 5 gols em 30 minutos de jogo, dos quais 3 gols ocorreram num intervalo de 10 minutos, o time desbaratado, sem meio-campo..., — 3 gols que a saída de Bernard sozinha facilmente evitaria. Um Louis van Gaal, por exemplo, e como tivemos ocasião de ver, não pensaria duas vezes em pôr quem quer que fosse na berlinda pra salvar um resultado. Scolari preferiu, porém, com a omissão, não comprometer ninguém, nem a si mesmo. Sem as substituições que qualquer técnico digno do nome teria feito, ele buscou eximir todo mundo de culpa (as alterações seriam uma espécie de confissão assinada, dele e dos substituídos), jogando a catástrofe no colo do imponderável. De uma covardia indigna da posição. 

7.7.14

Ishikawa

Três tankas de Takuboku Ishikawa, importante poeta japonês da virada do século XIX pro XX, morto aos 27 anos por tuberculose — teve apenas dez anos de produção poética —, na tradução conjunta de Masuo Yamaki e Paulo Colina, publicada em 86 pela Roswitha Kempf Editores. Como referi, trata-se de tankas — forma tradicional feita de cinco versos de 5-7-5-7-7 sílabas cada. Agora, não me perguntem por que são apresentados como tankas, se têm o formato, tanto no original japonês reproduzido no livro quanto na versão portuguesa, do haikai, composto sabidamente por apenas três versos. Desconfio que tenha que ver com a natureza subjetiva do assunto etc., mas é chute.

fumaça que se desfaz no céu azul,
fumaça que se desfaz melancolicamente:
meu espelho
*
morressem todos os que me humilharam,
ainda que por uma só vez:
essa a minha prece

*
minha cabeça parece um barranco
em que a terra, dia a dia,
desmorona, tristemente

Reduzidos

Gosto de imaginar que o sentido de redução, em português, mudou por consequência dos esforços de quem mais a praticava. Me explico. Até o século XVIII, reduzir era prioritariamente, conforme Bluteau e Moraes, numa acepção ainda próxima à do étimo latino, — reconduzir, redirecionar, ou mesmo trazer de volta, restabelecer. De onde seu amplo uso no discurso religioso de então. Segundo Vieira, por exemplo, a missão dos jesuítas no Brasil era “reduzir os índios à fé”, ou seja, reencaminhá-los a Deus, recolocá-los no caminho da salvação, dirigi-los para dentro da igreja. E tão eficazmente os reduziram, que não nos restou outra opção além de atualizar seu significado, que já não passa para nós da mais pura diminuição.

5.7.14

O fazedor de silêncio





















Um estilo bastante peculiar, o de Antonio Di Benedetto, fundamentado num verdadeiro horror ao lugar-comum, se bem que de natureza bem distinta ao de um Guimarães Rosa: não há espetacularidade alguma em suas frases, todas discretas, nem mesmo neologismos para além do que dá título ao livro, — frases no entanto sempre novas, inesperadas em seu rigor, precisão e exigência. Juan José Saer chega a dizer que Di Benedetto é dono de uma das dicções mais originais do século XX, juízo que, por exagerado que pareça, não é de todo injustificado. Frases discretas, sem qualquer espalhafato, eu dizia, como era de se esperar de um narrador que abominasse as interferências do ruído. Porque é precisamente disso que se trata: da saga de um homem que foge ao tormento causado pelo barulho que então começava a se tornar onipresente, no pós-guerra, por meio de fábricas, oficinas, rádios, alto-falantes... Melhor: da resistência fracassada ao barulho como metáfora de tudo quanto se impõe ao indivíduo e o impede de ser.

3.7.14

Dor

A primeira seleção a que eu assisti, em Copa, tinha ninguém menos que o Romário no comando do ataque. As seguintes, tiveram o Ronaldo, depois o Adriano. Que dor no coração estar vivo pra ver Jô substituindo Fred. (Agora, é verdade que, entre Ronaldo e Fred, contamos com Luís Fabiano, etapa de uma descensão tão regular que inclusive nos permite o vislumbre do que nos aguarda em 2018.)

Estratégia

Agora que perdeu a hegemonia do meio editorial, e já circula no Brasil um número considerável de autores conservadores e liberais dos quais nunca antes se tinha ouvido falar, parte dos esforços da militância esquerdista tem migrado para as livrarias, — uma vez que, se já não conseguem impedir que sejam publicados, que ao menos impeçam de serem vendidos, desencorajando à boca do caixa o máximo possível de clientes. A estratégia por enquanto vai despercebida. Mas é de se esperar o dia em que, descoberta, receberá também sua denúncia, quando então veremos a livre associação de pessoas interessadas na saúde intelectual da população brasileira, em iniciativas presumivelmente intituladas “Meu livreiro mentiu pra mim”, “Livraria sem partido”...