29.9.14

Os melhores

Todo o problema norte-americano com o futebol se resume ao fato de que só pode haver algo de fundamentalmente muito equivocado com um esporte no qual eles não conseguem ser os melhores.

Precursor

Há um pseudoepígrafo chamado Livro dos Segredos de Enoque, ou Segundo Livro de Enoque, ou ainda Enoque Eslavo — já que o único manuscrito que existia era em tradução para o eslavo, até que se acharam fragmentos dele em copta —, uma grande loucura apocalíptica que busca lançar luz sobre episódios canônicos mais enigmáticos, como por exemplo o envolvendo a impiedade dos nefilim, entre outros. Ninguém sabe ao certo quando foi escrito — século I é a data mais provável —, nem a língua — provavelmente em grego —, nem se de autoria judaica ou cristã — possivelmente judaica.

Mas isso tudo apenas pra dizer que fui folheá-lo outro dia e, de cara, duas coisas me chamaram a atenção:

— o livro começa no mesmíssimo e tão conhecido clima kafkiano, com Enoque acordando de uma incômoda noite de sono e enxergando ao pé da cama dois homens — anjos de aspecto terrível — que o comunicam a intimação divina para uma visita aos céus;

— e o mais surpreendente: Enoque acompanha os tais anjos indo de céu em céu: 1º céu, 2º céu, 3º céu, 4º céu, e assim por diante, até o 7º céu, se não me engano. E depois conta o que viu em cada círculo: anjos, arcanjos, o trono de Deus... Sim, sim. Exatamente a viagem que Dante, mil e duzentos anos depois, vai refazer.

28.9.14

O pedido

Eu era capaz de jurar que somente pessoas vestidas como destaque de carro alegórico estavam autorizadas a chegar a um balcão de lanchonete e pedir um copo de morango com amora batidos na água de coco. Mas parece que não.

25.9.14

Nosso

Segundo o senhor Antônio Cândido, a literatura brasileira é, no conjunto, um Chevette caindo aos pedaços que, se é verdade que não vale nada, pelo menos é nosso.

20.9.14

Parte da realidade

¿Podemos hoy imaginar el mundo sin Don Quijote? Cuesta mucho. ¿Sin Hamlet? Cuesta mucho. Sin embargo, hubo una época en que no existían. Hoy ellos forman parte de la realidad porque fueron imaginados; lo que se imagina se convierte entonces en parte de la realidad indisoluble y ya no puedes entender la realidad sin lo que imaginó el escritor.

(Carlos Fuentes)

Desimportância

Carlos Fuentes, escritor mexicano falecido não faz muito, é autor de um ensaio belíssimo chamado, vejam vocês a consideração, “Machado de La Mancha”. Nunca o li, mas soube que nele Fuentes chama de milagre pra cima ao nosso Machado — um herdeiro solitário de Cervantes em pleno realismo romântico e naturalista oitocentista e, não bastasse isso, ainda por cima no Brasil, esse grande cu do mundo.

Acontece que Fuentes foi muito amigo de Milan Kundera, compartilhando com este a mesma concepção alternativa de romance. Se conheceram primeiro ainda na República Tcheca, quando Fuentes foi até Praga com García Márquez e Cortázar só pra conhecê-lo. E depois que Kundera se exilou na França, passaram a se frequentar com regularidade, já que Fuentes era embaixador do México em Paris justo naquele período, anos 60 ou 70, nem sei.

E se relembro esses dois fatos aparentemente sem relação é apenas porque de repente fiquei imaginando Fuentes falando pra Kundera sobre Machado, um autor que este certamente teria colocado em seu panteão, assinalando-o como precursor junto de Sterne, Diderot, Musil, Broch. E fiquei lembrando o que o próprio Kundera diz sobre o isolamento das línguas periféricas. Segundo ele, qual seria hoje a importância mundial de Kafka, tivesse este escrito em tcheco? Nós, infelizmente, sabemos a resposta.

A nossa e a deles

Entre a nossa ociosidade e a deles, há páginas de diferença.

14.9.14

A outra palavra

Hoy, al leer en un periódico una noticia sobre no sé qué película, tropecé con esta frase: el hombre no es un pájaro. Y pensé: decir que el hombre no es un pájaro es decir algo que por sabido debe callarse. Pero decir que un hombre es un pájaro es un lugar común. Entonces… entonces el poeta debe encontrar la otra palabra, la palabra no dicha y que los puntos suspensivos de “entonces” designan como silencio. Así, luche con el silencio.
 
(Octavio Paz, em carta de 23 de abril de 1967, ao também poeta Pere Gimferrer.)

10.9.14

Música

É incrível como todos os deuses do mundo ensejam boa música, mesmo os verdadeiros. 

7.9.14

Aplicativo

Hoje em dia já está quase tão difícil tomar um táxi sem o auxílio de um aplicativo pra celular quanto manter uma conversa.

Unanimidade

O único desacordo entre os homens é quanto ao que afinal justifica a violência.

6.9.14

Consciência

É preciso que as pessoas se conscientizem de que já são muitas as câmeras espalhadas para que se continue possível ser humano impunemente.

5.9.14

A invenção da barbárie

O mundo está terminantemente proibido de tudo quanto a Europa se cansa. 

Perspectiva

Os europeus que conquistaram as Américas e as civilizaram: colonizadores. Os mouros que civilizaram a Península depois de a conquistarem: invasores. 

Reconquista, o nome dado à expulsão dos colonos mouros, depois de quase oitocentos anos de presença na Europa. Depois de míseros quinhentos anos nas Américas, alguma chance de retomada indígena junto ao invasor europeu? 

2.9.14

Oliverio Girondo II

NOTURNO

Frescor dos vidros quando se apoia a testa na janela. Luzes tresnoitadas que ao serem apagadas nos deixam ainda mais sós. Teia de aranha que os arames tecem sobre os terraços. Trote oco dos pangarés que passam e nos emocionam sem razão.
O que nos faz recordar o uivo dos gatos no céu, e qual será a intenção dos papéis que se arrastam pelos pátios vazios?
Hora em que os velhos móveis aproveitam para sacar as mentiras, e em que os encanamentos têm seus gritos estrangulados, como se asfixiassem dentro das paredes.
Às vezes se pensa, quando se vira a chave da eletricidade, no espanto que as sombras sentirão, e gostaríamos de avisar a elas, para que tivessem tempo de encolher-se nos cantos. E às vezes as cruzes dos postes telefônicos sobre os terraços têm algo de sinistro, e gostaríamos de roçar-nos às paredes como um gato ou um ladrão.
Noites nas quais desejaríamos que nos passassem a mão pelas costas, e nas quais subitamente se compreende que não há ternura comparável à de acariciar algo que dorme.
Silêncio! – grilo afônico que nos entra pelo ouvido. Canto das torneiras mal fechadas! – único grilo que convém à cidade.

Buenos Aires, novembro, 1921.

Oliverio Girondo I

PEDESTRE

No fundo da rua, um prédio público aspira o mau cheiro da cidade.
As sombras quebram a espinha nos umbrais, se recostam para fornicar na calçada.
Com um braço preso à parede, um lampião apagado tem a visão convexa da gente que passa de automóvel.
Os olhares dos transeuntes sujam as coisas que se exibem nas vitrines, afinam as pernas que pendem sob a capota das carruagens.
Junto ao meio-fio, uma banca acaba de engolir uma mulher.
Passa: uma inglesa idêntica a um lampião. Um bonde que é um colégio sobre rodas. Um cachorro fracassado, com olhos de prostituta que nos dá vergonha de ver e deixar passar.
De repente: o guarda na esquina detém com um golpe de batuta todos os estremecimentos da cidade para que se ouça, em um só sussurro, o sussurro de todos os seios que se roçam.

Buenos Aires, agosto, 1920.