Gostamos de ver na cegueira de Homero, claro que não sem razão, a metáfora de uma visão especial, superior, exclusiva. Mas há quem perceba nela o estigma fundamental do artista, convertido depois em preconceito no fundo jamais superado. Hefesto, outra figura de artífice do antigo mundo grego, também leva consigo a marca da limitação física. Fica parecendo que, para os primeiros homens, só poderiam se dedicar a esse tipo de mister aqueles incapacitados para outros, mais concretamente úteis, como por exemplo a guerra.
20.6.16
Proeza
Não é por acaso que somos absolutamente incapazes de amadurecimento: Adão e Eva, nossos primeiros pais, já nasceram adultos; nunca tiveram de cruzar o árduo caminho que vai da infância à vida adulta, o qual tornaram, com isso, intransponível, já que não nos legaram os meios inatos de fazê-lo. Para piorar, Cristo, o segundo Adão, de quem poderíamos aprender pelo exemplo, se é verdade que nasceu ainda um bebê, só voltou a nos ser apresentado já homem feito. Sobre como conseguiu a proeza de chegar aos 30 sem continuar nos 15, nós jamais saberemos.
Fronteiriço
A Comédia é um poema essencialmente medieval, que no entanto já carrega em si a marca do espírito renascentista, a começar pela orientação de Virgílio. Da mesma forma que o Quixote é um livro dedicado a uma instituição medieval, que presta no entanto o serviço de testemunhar o nascimento do homem moderno e sua crise. Curiosa ambiguidade, esse pertencimento a dois mundos (um que se abre, outro que se fecha), a dupla natureza obsoleta e atual desses livros.
20.5.16
10.5.16
Nem todos
Nem todos os cães ladram enquanto a caravana passa. Eu sou um que, por exemplo, mal a observa.
1.5.16
Otimismo
Considerar a vida um labirinto é já um grande otimismo, porque pressupõe a existência de ao menos um caminho, ainda que inencontrável.
30.4.16
Distância
Houve um tempo em que as pessoas estavam a tal ponto ligadas umas às outras, que dos gestos daqueles que ficavam dependia inteiramente a sorte daqueles que partiam. Houve um tempo em que nem mesmo a distância podia contra a eficácia dos gestos humanos. Houve um tempo em que a distância sequer existia.
17.4.16
Sono
Segundo o mito de criação dos nandi, um povo do Quênia, o indício de que os seres humanos eram maus, mesmo antes de iniciarem a carreira de maldades que mais tarde os caracterizaria, era a capacidade que sempre tiveram de se mexer durante o sono. “Que tipo de criatura é o homem? Ele consegue se virar de um lado para o outro mesmo enquanto dorme.”
12.4.16
Dilema
Sempre que se dirigiam a Cristo com uma questão que, pela forma redutora como era apresentada, só lhe possibilitava duas respostas, ambas em todo caso insuficientes, ele saía-se invariavelmente por uma terceira via alternativa. Apedrejar a mulher adúltera, sim ou não? Pagar tributo a César, sim ou não? Guardar o sábado, sim ou não?... Dentro do rol das grandes lições evangélicas mais desperdiçadas, eu acrescentaria ainda esta: não ceder à imposição de dilemas.
2.4.16
Máxima
Autor de um livro de máximas intitulado Poesias, Isidore Ducasse, também conhecido como Conde de Lautréamont, assim as explica:
A máxima não precisa dela para se provar. Um raciocínio exige um raciocínio. A máxima é uma lei que encerra um conjunto de raciocínios. Um raciocínio se completa à medida em que se aproxima da máxima. Tornado máxima, sua perfeição rejeita as provas da metamorfose.
1.4.16
Jó
O Livro de Jó talvez marque o momento exato em que surge, no pensamento judaico, a crise que o conduz à necessidade de uma perspectiva escatológica. Até então, o que eles tinham era a vida, regulada pela Lei em cada um de seus aspectos, mesmo mais corriqueiros, e ao longo de todas as suas fases, do berço ao túmulo. Mesmo o paraíso com que contavam era de natureza geográfica. Até que surge, para a sensibilidade de alguns, o escandaloso descompasso entre justiça pessoal e bem-aventurança: os justos eventualmente sofrem; os ímpios na quase totalidade dão-se bem. Ora, Deus onde está, que não recompensa os homens segundo a vida que vivem? Mais: um Deus que assim o faz pode ainda ser considerado justo? Os responsáveis pela tradição apressam-se com os panos quentes, mas em vão. Mesmo a submissão vai agora cheia de uma perplexidade inevitável, dada a carteirada de Deus: “Onde vocês estavam quando Eu criei o mundo?” Para o impasse, uma solução possível: a ressurreição dos justos para a vida, a dos ímpios para a morte. O céu. O inferno.
29.3.16
Caixa-preta
Também ao que se passa no coração dos homens só se costuma ter acesso a seguir a algum desastre.
26.3.16
Da coerência
Vivemos às margens de uma cultura que já foi capaz de punir com a morte tentativas falhadas de suicídio.
24.3.16
Sade
Entre os muitos autores franceses aos quais Nietzsche vivia fazendo referência, não lembro de ter encontrado o nome do Marquês de Sade. Mas, concluindo-se a leitura de seu A filosofia na alcova, resta evidente que a “transvalorização de todos os valores” proposta pelo alemão teve nele um precursor. O livro em questão é, na prática, um catecismo invertido, um manual de valores cristãos revirados ao avesso. Um resumo possível das lições morais de Dolmancé à jovem Eugénie é o seguinte: tudo quanto o cristianismo elogia deve ser repudiado, assim como deve ser defendido tudo quanto o cristianismo combate. Com essa possível diferença: enquanto o francês o faz baseado na sua visão de natureza, Nietzsche o faz nalguma espécie de idealização da nobreza. Sade quer a inversão do que chama de preconceito moral cristão porque os homens não passam de animais; Nietzsche a vai querer, depois, porque talvez pudessem chegar a ser deuses. Em todo caso, ainda mais interessante do que essa inversão moral defendida por Dolmancé é o seu método argumentativo. No referido livro, Sade põe na boca do preceptor de Eugénie, a par do naturalismo mais consequente, argumentos de cunho eminentemente antropológico. Está certo que a moral deve basear-se de maneira positiva na natureza humana, e que toda e qualquer moral que vá de encontro aos seus impulsos é uma moral preconceituosa, baseada em superstições religiosas. Porém a forma encontrada por Dolmancé para certificar-se de que a condenação a determinados atos por parte do cristianismo — tais como o incesto, a homossexualidade, a poligamia — era arbitrária foi apontar sua aceitação nas culturas mais diversas, espalhadas tanto no tempo quanto no espaço: afinal, um ato não pode ser contrário à natureza humana se foi, ou ainda é, não apenas praticado como encorajado por essa ou aquela parcela da humanidade. Em Sade, o relativismo cultural apenas intuído por Montaigne aparece já, talvez pela primeira vez, como programa. O raciocínio que Montaigne faz com certa timidez, almejando quando muito uma defesa, ou compreensão, da moral indígena do Novo Mundo, Sade o faz em desafio ostensivo à moral europeia: “Por causa dessas diferenças puramente geográficas [e também temporais, já que são frequentes as menções à Antiguidade], pouco caso devemos fazer da aprovação ou do desprezo dos homens, sentimentos ridículos e frívolos acima dos quais nos devemos situar.”
5.3.16
24.2.16
Comprovação
Uma comprovação de que o desafio de uma perspectiva cultural não evolucionista é realmente uma forma viável de escapar à redutora disputa entre conservadorismo e progressismo foi o fato de Lévi-Strauss, um de seus proponentes mais reconhecidos, ter, ao longo de toda a carreira, as ideias combatidas tanto por conservadores quanto por marxistas, uma vez que ele tanto (segundo aqueles) diminuía as conquistas da civilização ocidental ao equipará-las quase patologicamente a toda sorte de selvageria, quanto (segundo estes) deslegitimava as forças revolucionárias do progresso que pela primeira vez se voltavam contra as injustiças de classe. Quer dizer: enquanto todos a seu redor se estapeavam buscando definir onde afinal residiria a superioridade da civilização europeia, se em seu passado ou em seu futuro, Lévi-Strauss sugeria que, diante de tudo que ainda se podia saber a respeito de uma série quase extinta de outras culturas, tal superioridade fosse ilusória, porque relativa.
21.2.16
Alternativa
Enquanto os estudos etnológicos caminhavam a passos largos rumo à superação definitiva do evolucionismo cultural (que é a ideia de uma contínua progressão cultural desde o homem primitivo até o europeu moderno; a ideia de que tudo que não seja a moderna sociedade europeia é o resquício de um estágio evolutivo já ultrapassado, uma forma de atraso), iam surgindo as grandes teses marxistas, freudianas (A origem da família, da propriedade privada e do estado; Totem e tabu; O futuro de uma ilusão), todas fundamentadas nesse mesmo evolucionismo cultural que a antropologia chegaria a desautorizar. E essa circunstância demonstra como a antropologia é, assim, uma alternativa efetiva, não abstencionista, ao cabo de guerra entre conservadorismo e progressismo, ambos nascidos de uma mesma ideia unilinear de progresso cultural, apenas disputando entre si sobre onde afinal encontrar-se-á o ápice, se no passado ou futuro da história europeia.
20.2.16
Explicado
É impossível tomar conhecimento de que a primeira população não-indígena do Brasil foi composta, ao longo de todo o século inicial de colonização, quase exclusivamente por degredados — isto é, por gente criminosa literalmente corrida da Metrópole — sem afinal achar que fica tudo explicado. Tal associação entre a má qualidade moral de ontem e a de hoje nos é tão tentadora, que não dá espaço para a mínima suspeita quanto à natureza do código penal então vigente e nossa absoluta desconformidade em relação a ele; e tão conveniente, que até nos impede de lembrar que, desde o nosso ponto de vista, poucas coisas na história da humanidade conseguem parecer tão estúpidas quanto o modo de pensar do contrarreformismo ibérico: pois se para nós, hoje, criminoso é o homicida, o violador, o ladrão e outras figuras que tais, para a coroa portuguesa do séc. XVI era igualmente criminoso — por isso digno igualmente de degredo — o homem que dizia mal da igreja, a velha analfabeta que tinha visões e prometia feitiços, a mulher casada que se deitava com um vizinho, o cristão-novo que persistia em não comer carne de porco...
8.2.16
Valorização
A valorização do reles, na arte como um todo, foi uma contribuição da estética realista. E não passa o impressionismo, sobretudo em pintura, do realismo levado à última consequência do instante. Van Gogh não chegou exatamente a ser um impressionista — estava já na fronteira do expressionismo —, mas sempre orbitou intelectualmente o movimento, além de ter sofrido muitas influências comuns, uma das quais ele revelará a seguir. Como consequência disso, tirando o sol e o céu estrelado, o holandês só teria olhos para coisas insignificantes: quando não camponeses jantando, ou cochilando, ou trabalhando, um par de botas rotas, um quartinho qualquer... E tudo isso porque, segundo ele: “Ao estudarmos a arte japonesa, veremos então um homem incontestavelmente sábio, filósofo e inteligente, que gasta todo o seu tempo de que forma? Estudando a distância que separa a terra da lua? Não. Estudando a política de Bismarck? Não. Apenas estudando uma folha de capim.”
21.1.16
Dinossauro
Vieira gasta não sei quantos sermões ameaçando de inferno a negligência e a corrupção das mais altas autoridades do Império, sempre em vão. Igualmente em vão, gasta não sei quantos outros com a mesmíssima ameaça, agora contra a gente qualquer da colônia portuguesa no Brasil. O que isso significaria, senão que toda essa gente sua contemporânea — eclesiástica inclusive — já não estava nem aí para isto de comparecer, naquele Último Dia, ante o Juízo de Deus? Sendo assim: Vieira como índice, também, daquilo que já NÃO se acreditava no século XVII. Muito se fala do Vieira homem à frente ou máximo representante do seu tempo. Mas talvez seja possível, ainda, falar do Vieira dinossauro, verdadeiro Dom Quixote da visão medieval do mundo.
Compensação
Maradona ficou famoso pelo hábito de driblar meio time adversário. Mas vocês reparem na quantidade de vezes em que o argentino precisou driblar cinco ou seis marcadores pelo único motivo de ser absolutamente incapaz de utilizar a perna direita para qualquer outra função que não fosse a de mísero apoio. E se todo o virtuosismo de Maradona nos dribles não foi senão uma compensação a uma grave limitação técnica?... Tal suspeita quase nos obriga a especular que, se essa limitação não existisse — isto é, se Maradona fosse minimamente capaz de tocar, lançar e chutar com a perna direita, como tantos e tantos jogadores —, ele muito possivelmente não teria feito cerca de dois terços daquelas jogadas improváveis que tanto o celebrizaram. Se há sentido nesse raciocínio, então Maradona é um exemplo de pessoa que teria sido pior se fosse melhor — exemplo de pessoa que não teria chegado a gênio se tivesse ao menos consigo ser medíocre.
6.1.16
Benefício
Entre os benefícios da morte está o de garantir a circulação de certos livros. Ou ainda: o que seria dos sebos sem as viúvas?
Princípio
Da Legenda de São Francisco de Assis, de São Boaventura: “De tanto remontar à origem primeira de todas as coisas, sentia por elas um afeto irreprimível. A todos os seres, por mais insignificantes que fossem, aplicava o doce nome de irmão ou irmã, pois sabia que todos procediam dum mesmo princípio.” E isso a propósito da importância do santo na passagem da arte gótica para a renascentista, por intermédio de Giotto, assim explicada por Juan de la Encina, em La pintura italiana del Renascimento:
O sentimento místico da natureza que Francisco de Assis revelou e propagou pelos vales e montanhas da Úmbria parece ter contribuído para a aparição do chamado realismo artístico em seu século e no seguinte [XIII e XIV] e, com isso, dos primeiros vislumbres da pintura paisagista e, ao mesmo tempo, da representação não simbólica mas real dos animais e da contemplação estética da vida cotidiana. De maneira que a revolução espiritual que trouxe o franciscanismo repercutiu de múltiplas formas na nova concepção artística que, em oposição ao bizantinismo abstrato e formular, reclamava tacitamente o direito à representação da vida ou da realidade em toda sua extensão e intensão.
Livros
Se alguém ainda recorre a Gide, é por causa dos diários, mesmo havendo ele publicado inúmeros livros, então, do maior interesse. Quase o mesmo com seu contemporâneo Jules Renard, com a diferença de que os livros deste nunca marcaram época. Renard repete o caso de Amiel, outro escritor que teria desaparecido sem as páginas dos diários. Indo mais longe, Pascal se tornou clássico pelas notas que tomou para um livro que não chegou a escrever. Quase como Joubert, que, sem ter publicado coisa alguma em vida, é igualmente conhecido, hoje, pela publicação póstuma das notas que foi acumulando, só que sem plano algum de obra futura. Além desses, os escritores de um único livro indefinidamente aumentado em sucessivas reedições — livros utilizados como meros suportes para textos avulsos, sem nenhuma dependência entre si: Montaigne, La Bruyère, La Rochefoucauld...
Proclamação
Os missionários chegavam às aldeias do Novo Mundo proclamando, entre outras coisas, a ressurreição dos mortos, a imortalidade em Cristo. E algumas tribos se impressionavam tanto com o negócio, que logo matavam os missionários e ficavam esperando.
30.12.15
Omphalos
Uma das alegações mais insistentes feitas por Mircea Eliade é a de que o mito faz parte tão fundamental da existência humana, que nos é algo absolutamente inextirpável, por maiores que sejam as hostilidades contra ele. Quando muito, aquelas grandes imagens se degradam, se marginalizam, ou então vestem a máscara da racionalidade mais respeitável e passam a circular despercebidas entre os homens. Entretanto basta que se trave contato com suas formas primordiais, mais elementares, para que seus resquícios modernos sejam facilmente reconhecíveis. Esse é, aliás, um dos principais divertimentos que a leitura do historiador romeno proporciona: a possibilidade de pegarmos no contrapé o primitivismo de gestos considerados os mais cultivados. Por exemplo, a crença no axis mundi. Todos os povos antigos, inclusive e sobretudo os mais rudimentares, se consideravam o centro do mundo, habitantes daquela região em torno da qual os deuses haviam criado tudo que existe, sobre a única porta de acesso ao reino do sobrenatural. Para além de cada um deles, só poderia haver o caos, as trevas, as forças demoníacas — ou, em linguagem mais familiar, a barbárie. É bem verdade que, se tradicionalmente todos os povos se consideravam centrais, indispensáveis para a manutenção do cosmos, a experiência colonial conseguiu a proeza de forjar os primeiros povos com a triste consciência da periferia. Mas, apesar dessa consciência — ou justamente por causa dela —, por acaso houve alguma tribo que tenha acreditado mais intensamente na sacralidade de determinado sítio quanto as mentes brasileiras mais ilustradas acreditam na sacralidade da Europa — único lugar do globo onde o grande deus Civilização se manifesta?
24.12.15
Ninguém
As pessoas não se incomodam de falar apenas para alguns, desde que esses alguns ou sejam muitos, ou raros. Quando o indispensável é dirigir-se a todos, ainda que se fale a ninguém.
23.12.15
Vitória
Enquanto dois partidos ideologicamente contrários polarizam uma disputa, a vitória assegurada é a do que têm em comum.
21.12.15
20.12.15
Cassirer
Encontro em Ernst Cassirer algo que até então nunca tinha visto: um filósofo, mas um filósofo etnograficamente muito bem informado. Não sem frequência o lemos afirmar que, segundo Kant, ou Bergson, ou Hegel, ou qualquer outro filósofo ainda menos acessível, a arte, ou a música, ou a religião, ou o mito, é isso ou aquilo, para logo em seguida concluir: contudo, entre as tribos de não sei que lugar verifica-se que a arte, ou a música, ou a religião, ou o mito, nunca foi nada parecido com isso. E, sinceramente, não consigo pensar em contribuição mais valiosa do que essa: a correção de generalizações universalizantes a respeito das coisas humanas, feitas a partir do gabinete, pelo contraste com a experiência concreta de homens espalhados pelas partes mais distantes do globo. Cassirer definitivamente conhecia tudo o que os europeus haviam suposto sobre o homem. Mas também tinha notícia dos homens como de fato eram.
4.12.15
Cosac
O livro pelo qual mais sou grato à Cosac Naify — o livro que mais me dá a impressão de que, não fosse a Cosac Naify publicá-lo, e eu nunca nem teria chegado a tomar conhecimento de sua existência — é o Romance das origens, origem do romance, da francesa Marthe Robert, autora especialista também em Kafka. Nesse livro iluminador, ela apresenta uma versão psicanalítica para a origem do romance, o qual seria uma objetivação artística do fenômeno conhecido em psicanálise como “romance familiar do neurótico”, que, porcamente resumido, são as histórias que as crianças se inventam em resposta às primeiras grandes frustrações com os pais. Outro fundamento de Marthe Robert é O mito do nascimento do Herói, livro de Otto Rank, em que se demonstra como o referido mecanismo estaria na base da formação dos mitos heroicos — não sei se já repararam, mas com muita frequência o herói mitológico começa por não ser exatamente o filho das pessoas que o criam, isso quando não é criado mesmo por animais: Moisés não é filho da família egípcia em que cresce, Édipo mata o pai biológico tentando fugir dos pais que não sabia serem adotivos, Jesus não era filho de José mas de Deus etc. etc. — o mesmo se daria com os contos de fada, cujo cerne familiar é evidente, com todos os reis e rainhas, príncipes e princesas, crianças ora abandonadas pelos pais, ora perseguidas por madrastas... Nisso consiste a primeira parte do livro: em demonstrar como a fabulação teria nascido dessa tentativa de rearranjo da relação de todo ser humano com a figura paterna. Na segunda, ela aplica toda essa hipótese, construída sobre Freud e Rank, na interpretação propriamente dita de duas obras consideradas, a depender do ponto de vista, o primeiro romance moderno: o Dom Quixote, do Cervantes, e o Robinson Crusoé, do Defoe, para isso as enquadrando em duas categorias de “romance familiar”, a do “filho bastardo” e a da “criança perdida”. Uma das coisas mais surpreendentes e cheias de sentido que já li.
O caminho
O primeiro passo rumo ao “bom selvagem” se dá quando os missionários calvinistas franceses, vendo o horror dos missionários católicos ante certos costumes indígenas, se perguntam: “E desde quando católico tem moral pra reclamar da selvageria alheia?” (Jean de Léry faz a pergunta pensando na tão celebrada Noite de São Bartolomeu.) Esse raciocínio chega até Montaigne, que, mesmo sendo católico, o corrobora, apenas ampliando a identificação religiosa para cultural: “Os povos europeus também não cultivam suas barbaridades?” — pergunta ele, pensando sobretudo nas fogueiras espanholas. E vai um pouco além: “Não tem essa gente uma nobreza que nós já perdemos, e não estão eles mais próximos do espírito da Antiguidade do que nós?” Depois chega Rousseau (não por acaso de educação calvinista), e responde que sim, e tira daí as consequências.
1.12.15
Evolucionismos
O mais importante tem me parecido conseguir escapar a toda e qualquer forma de evolucionismo, seja religioso, seja cultural, seja estético, seja biológico. Escapar a toda e qualquer compreensão que se afigure como uma linha ascendente ligando um ponto primitivo de origem a um ponto final plenamente desenvolvido. Escapar a toda e qualquer compreensão universalizante que pretenda substituir a linha que vai do Gênesis ao Apocalipse, além, claro, da própria linha que vai do Gênesis ao Apocalipse.
29.11.15
Preocupação
Os monoteísmos se preocupam tanto com o destino eterno dos homens, que até a polícia eles estão dispostos a interpôr entre estes e o inferno.
26.11.15
Moderados
A gente só lembra do meio-termo quando puxam com força maior que a nossa rumo à extremidade oposta.
22.11.15
Formalidade
A sensibilidade ocidental não está lá muito preocupada com a prática ou não da violência — isso é o de menos —, desde que exista contra ela alguma espécie de condenação formal. Desde que exista contra ela um papelucho subscrito em que se leia: “Não é certo fazer isso que vocês vão continuar fazendo.” Daí porque pouco importa o tratamento desumano que populações inteiras tenham recebido nas colônias europeias: importa é que exista uma bula, assinada pelo papa não sei qual, dizendo que essa gente tinha alma. Pouco importa que comunidades judaicas tenham sofrido violência de maneira regular durante todo o medievo: importa que exista outra bula, assinada por sei lá qual outro papa, proibindo cristãos de perseguirem judeus. Pouco importa que povos cristãos hajam sempre se matado uns aos outros pelos mais diversos e fúteis motivos: importa que Cristo mandou dar a outra face. De onde o problema ocidental com o mundo islâmico, cuja (in)sensibilidade prescinde dessa grande ferramenta de conforto psicológico: a hipocrisia. Parece que lá eles admitem abertamente a violência entre as formas legítimas de resolver algumas questões. É claro que os ocidentais também acreditam nisso, aliás mais do que em qualquer outra coisa, mas já não conseguiriam sobreviver a essa admissão, que lançaria por terra toda a superioridade moral do cristianismo, a qual não consiste em outra coisa que não seja os cristãos fazerem sistematicamente tudo que a religião cristã proíbe.
21.11.15
Biblioteca
Em kikongo, uma das línguas bantus que nos chegaram vindas principalmente de Angola, a palavra com que eles, hoje em dia, designam biblioteca é makulu, a qual originalmente significava: a) antiga aldeia, velha cidade, ruína onde o passado ou sua história estão ocultos; b) a cidade dos ancestrais, o mundo espiritual.
17.11.15
Ocidente
O Ocidente é a violência expansionista do Império Romano a serviço da caridade da Igreja. É por isso que o Ocidente fere conclamando à cura. Assassina em nome da misericórdia. Mente por amor da verdade. Oprime com a libertação como pretexto. Com essa dupla natureza, o Ocidente habituou-se a gozar de todos os benefícios da violência contra os outros, mas com a consciência leve e tranquila de quem jura que não quer senão o bem universal. O mundo que a Igreja criou jamais teria chegado a ser o que é sem o emprego sistemático da violência mais injusta, muito embora esta se ufane de ter sido fundada sobre aquele que primeiro ensinou a dignidade de todo ser humano.
16.11.15
Subterrâneo
A mensagem cristã, embora tenha permitido ou até solicitado ser imposta, como aliás qualquer verdade, abriu porém um inesperado caminho subterrâneo até o Outro, ao fim do qual ninguém jamais escapou à urgência de negá-la. A singularidade da mensagem cristã — poderíamos dizer: sua única superioridade — está em que nenhuma outra religião acaba suprimida pelo próprio cumprimento, ou preservada apenas pela própria traição. Sempre só pôde haver cristianismo ali onde faltasse cristianismo.
15.11.15
O evidente
Aquilo que acusam de incompreensível [na poesia moderna] é afinal o ‘evidente’ de que falam todas as grandes obras, o qual deve ser esquecido e continuar esquecido, porque não será tolerado nem resgatado pela sociedade./ A recordação do evidente, daquilo que nos permanece oculto, é que motivou insultos e perseguições à poesia, onde quer que na história tenha aparecido o poder sem disfarces. O que as ditaduras empregam contra a poesia prova que forças dela emanam. Por mais insignificante que seja seu alcance, do ponto de vista estatístico, seu efeito é imprevisível. A poesia é um elemento residual. Sua mera existência questiona o existente. Por isso o poder não a suporta. Ela é intolerável a todos os regimes totalitários. Na interminável lista de livros proibidos e queimados, a poesia moderna tem um lugar de honra. A existência de muitos de seus melhores autores foi marcada pelo terror fascista e stalinista; não se pode ignorar a lista de exilados, assassinados, mortos no exílio, tombados na guerra civil, levados ao suicídio, mortos nos campos de concentração, arruinados nas prisões, torturados, fuzilados, na Alemanha, na Espanha, na Rússia: muitos poetas de nosso século acabaram assim. Eles testemunham que a poesia moderna não pode existir sem liberdade: ou ela mesma realiza um fragmento dessa liberdade, ou acaba sucumbindo.
(Enzensberger)
13.11.15
11.11.15
Fortuna
Poucas coisas são tão indecentes quanto a possibilidade de se fazer fortuna com a obra de artistas que, por nenhum outro motivo além da criação dessas obras, viveram na miséria.
O pastor
Van Gogh não só foi o filho mais velho de um pastor reformado holandês, como foi ele mesmo, por volta dos seus vinte anos, pastor-auxiliar de umas quantas igrejinhas na Inglaterra, e depois missionário entre os mineiros de Borinage, na Bélgica.
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