18.11.11

Duas respostas à formiga

Porque não pode haver no mundo cretinice maior do que a daquela formiga, deixo após a versão de Bocage para o poema de La Fontaine duas respostas, das várias que, porventura existindo, eu desconheça.
A cigarra e a formiga
Tendo a cigarra em cantigas
Folgado todo o verão,
Achou-se em penúria extrema
Na tormentosa estação.
Não lhe restando migalha
Que trincasse, a tagarela
Foi valer-se da formiga,
Que morava perto dela.
Rogou-lhe que lhe emprestasse,
Pois tinha riqueza e brio,
Algum grão com que manter-se
Té voltar o aceso estio.
“Amiga, — diz a cigarra —
Prometo, à fé d’animal,
Pagar-vos antes de agosto
Os juros e o principal.”
A formiga nunca empresta,
Nunca dá, por isso junta.
“No verão em que lidavas?”
À pedinte ela pergunta.
Responde a outra: “Eu cantava
Noite e dia, a toda a hora.
— “Ó! Bravo! torna a formiga;
Cantavas? Pois dança agora!”
Ao que responderam, em 59, o português Miguel Torga:
Fábula da Fábula
Era uma vez
Uma fábula famosa,
Alimentícia
E moralizadora,
Que, em verso e prosa,
Toda a gente inteligente,
Prudente
E sabedora
Repetia
Aos filhos,
Aos netos
E aos bisnetos.
À base duns insectos,
De que não vale a pena fixar o nome,
A fábula garantia
Que quem cantava
Morria
De fome.

E, realmente...
Simplesmente,
Enquanto a fábula contava,
Um demónio secreto segredava
Ao ouvido secreto
De cada criatura
Que quem não cantava
Morria de fartura.
e o italiano Eugenio Montale, em versos só publicados, postumamente, em 96, vertidos aqui por Ivo Barroso:
Qual a diferença
entre a cigarra e a formiga,
entre o dissipador e o parcimonioso,
se um e outro acabarão despidos
no fim da viagem que a todos
nos iguala? “Nem vencedor,
nem vencido”, o dito popular
serve decerto para assinalar 
a mortal armadilha das escolhas.
Como barcos quiséramos vogar
a plagas bem melhores, mas ficamos
ancorados ao nosso nada.  
Discussão — já milenar, se se leva em conta que La Fontaine repetia Esopo — da qual eu destacaria duas coisas. A primeira delas: embora não tenha ajuntado, a cigarra não passou o verão coçando, como se diz. Esteve muito ativa: “... Eu cantava / Noite e dia, a toda hora.” — o “folgado”, logo do princípio, é coisa da cabeça de Bocage, não havendo no original (“La cigale, ayant chanté / Tout l’été”). A segunda, a convergência complementar. Se Torga aponta a morte em vida de muitos vivos (meras “bestas sadias”, que nos enchem o globo), Montale aponta para a morte da qual não escapará mesmo o mais providente.