29.9.12

Dilema falso

Trecho de uma das primeiras cartas de Mário de Andrade em resposta a um Drummond ainda jovem e inédito, por volta dos seus 22 anos, muito bem educado em francês e cheio de asco do Brasil. Carta que se encontra em A lição do amigo, reunião delas feita e comentada pelo próprio destinatário, publicada pela José Olympio.
Mais adiante você fala em “apertado dilema: nacionalismo ou universalismo. O nacionalismo convém às massas, o universalismo convém às elites”. Tudo errado. Primeiro: não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil pros brasileiros — ou regionalismo exótico. Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente ainda significa: ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com o seu passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família etc., ninguém que seja verdadeiramente, deixará de ser nacional. O despaisamento provocado pela educação em livros estrangeiros, contaminação de costumes estrangeiros por causa da ingênita macaqueação que existe sempre nos seres primitivos, ainda por causa da leitura demasiadamente pormenorizada não das obras-primas universais dum outro povo, mas das suas obras menores, particulares, nacionais, esse despaisamento é mais ou menos fatal, não há dúvida, num país primitivo e de pequena tradição como o nosso. Pois é preciso desprimitivar o país, acentuar a tradição, prolongá-la, engrandecê-la. [...] De que maneira nós podemos concorrer prá grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemães? Não, porque isso já está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. As raças são acordes musicais. Um é elegante, discreto, cético. Outro é lírico, sentimental, místico e desordenado. Outro é áspero, sensual, cheio de lembranças. Outro é tímido, humorista e hipócrita. Quando realizarmos o nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização. Me compreende bem? Porque também esse universalismo que quer acabar com as pátrias, com as guerras, com as raças etc., é sentimentalismo de alemão. Não é pra já. Está longíssimo. Eu creio que nunca virá. A República Humana, redondinha e terrestre, é uma utopia de choramingas e nada mais. Avanço mesmo que, enquanto o brasileiro não se abrasileirar, é um selvagem. Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo Horizonte e S. Paulo. Por uma simples razão: não há Civilização. Há civilizações. Cada uma se orienta conforme as necessidades e ideais duma raça, dum meio e dum tempo. Dizer por exemplo que os egípcios da 18º dinastia representam um degrau da civilização antiga que atingiria o esplendor com o séc. V a.C. dos gregos é uma besteira que dá apoplexia na gente. São ambos apogeus de civilizações diversíssimas. Nós, imitando ou repetindo a civilização francesa, ou a alemã, somos uns primitivos, porque estamos ainda na fase do mimetismo. Nossos ideais não podem ser os da França porque as nossas necessidades são inteiramente outras, nosso povo outro, nossa terra outra etc. Nós só seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo pra fase da criação. E então seremos universais, porque nacionais. Como os egípcios, como os gregos, como os italianos da Renascença, como os alemães de 1750-1880, como os franceses do séc. 17, como os norte-americanos do séc. 20 etc.