5.8.14

Alfonso Reyes

Poeta e ensaísta de ampla cultura, o mexicano Alfonso Reyes (1889-1959) foi também diplomata, em função do que teve uma ligação muito estreita com o Brasil, mais especificamente com o Rio de Janeiro, onde viveu como embaixador durante a década de 30. Apesar de ter sido — diz-se — um dos grandes divulgadores da cultura brasileira no México, e ter sido interlocutor de alguns dos principais escritores brasileiros de então, como Manuel Bandeira e Cecília Meireles, a obra de Reyes é quase absolutamente desconhecida entre nós, salvo engano meu nunca tendo sido traduzida. Como calhei de achar um volume da Fondo de Cultura Económica com sua Obra poética, ficam aqui três poemas dele à guisa de apresentação.

COM A VERDADE SABIDA E BOA FÉ GUARDADA

Para ser sincero, não aguento ninguém,
e só junto ao mar é que respiro.
Aí lhes deixo meus trajes, o que chamam de “roupas
de ir à missa”,
minha coleção de cachimbos, de bengalas,
de canetas-tinteiros, de lâminas Gillette,
meu rádio, os telefones que funcionam,
o aluguel pago,
a luz, o gás, os livros, as visitas,
os vizinhos; deixo o automóvel;
tudo lhes deixo, em troca
de uma poltrona a estibordo
de onde cante o mar e bata o sol.
Logo me arranjarei: me deixem em paz.
Sei muito bem o que quero quando estou a sós.
Esqueçam-se de mim, que eu me entendo
enquanto deixam de pedir-me a alma
de empréstimo para isto e para aquilo.
Já estou farto!
Deixem-me dormido sobre o mar!

A VERDAD SABIDA Y BUENA FE GUARDADA

Para decir verdad, no aguanto a nadie,
y yo sólo respiro junto al mar.
Les dejo ahí mis trajes, lo que llaman "trapitos
de cristianar",
mi colección de pipas, de bastones,
de plumas-fuente, de láminas Gillette,
mi radio, los teléfonos en marcha,
el alquiler pagado,
la luz, el gas, los libros, las visitas,
los vecinos; les dejo el automóvil;
todo los dejo, a cambio
de una butaca al estribor
a donde cante el mar y pegue el sol.
Ya yo me arreglaré: déjenme en paz.
Sé muy bien lo que quiero cuando me quedo solo.
Olvídense de mí, que yo me entiendo
en cuanto dejan de pedirme el alma
prestada para esto y para estotro.
¡Y ya me tienem harto,
Y déjenme dormido sobre el mar!

*
DESCONCERTO DO POETA
Atônito, o poeta surgiu desde seus mares,
coberto de algas;
mas a fosforescência que levava nos olhos
não o deixava ver.
Como em seu reino aquático,
o ar lhe grumava a garganta,
e queria nadar pelo espaço,
aos tropeções.
A multidão o rodeou aos gritos,
e acreditou ensurdecer.
De ásperas grinaldas o coroaram,
e acreditou que lhe deitavam cadeias de louros,
cadeias nas têmporas, as piores cadeias,
pois já nada permitem compreender.
E disse à Sereia:
— Fujamos rapidamente para onde não nos vejam
(a Sereia era sua mulher);
voltemos às grutas de âmbar cristalino
e ao mar cor de vinho
que espairece ao amanhecer
quando, ao frescor, borbulha o peixe,
e me arranque estas tranças de louros
que me arranham a pele.

DESCONCIERTO DEL POETA

Atónito, el poeta surgió desde suas mares,
enredado de algas;
mas la fosforescencia que traía en los ojos
no lo dejaba ver.

Hecho a sua reino acuático,
el aire le agrumaba la garganta,
y quería nadar por el espacio,
dando sólo traspiés.

Lo rodeó la multitud a gritos,
y creyó ensordecer.
Lo coronaron de guirnaldas ásperas,
y creyó que le echaban cadenas de laurel,
cadenas en las sienes, las peores cadenas,
que ya nada dejan entender.

Y dijo a la Sirena:
— Huyamos prontamente a donde no nos vean
(la Sirena era su mujer);
tornemos a las grutas de ámbar cristalino
y al mar color de vino
que se solaza en los amaneceres
cuando, a la fresca, burbujea el pez,
y arráncame estas trenzas de laureles
que me arañan la piel.
SUICÍDIOS
A que triunfo, a que derrota
carregava a espingarda entre suspiros,
e apertando o gatilho com o dedo do pé,
cerimonial, entrava no suicídio?
Com que esperança, com que desesperança
pendurava da viga
o cacho de ossos e de carnes,
com um palmo de língua como único adeus?
Que alquimia diluída
de pó vermelho e taça fumegante
lançou em suas entranhas
as alígeras ondas da morte?
Honesto comerciante de Romeo:
tu lhe deste a beberagem;
tu a corda, baú do avô marinheiro;
saco dos esportes de verão,
tu a pólvora, tu a munição.
Tudo estava previsto, até o anzol
do insaciável deus que pesca as criaturas;
até a gargalhada com que se foi do mundo,
ó sacramento,
deixando-nos a burla de um fantoche,
para arrastá-lo em carro de triunfo, lentamente,
com mãos delirantes e coroas.

SUICIDIOS

¿Para qué triunfo, para qué derota
cargaba la escopeta entre suspiros,
y apretando el gatillo con el dedo del pie,
ceremonial, entraba en el suicidio?

¿A qué esperanza, a qué desesperanza
colgaba de la viga
los racimos de huesos y de carnes,
con um palmo de lengua como único adiós?

¿Qué alquimia diluída
de rojos polvos e humeante copa
echó por sus entrañas
las alígeras ondas de la muerte?

Honesto comerciante de Romeo:
tú le diste la pócima;
tú la cuerda, baúl del abuelo marino;
hato de los deportes veraniegos,
tú la pólvora, tú los perdigones.

Todo estava previsto, hasta el anzuelo
del insasiable dios que pesca las criaturas;
hasta la carcajada con que se fué del mundo,
oh sacramento,
dejándonos la burla de un pelele,
para arrastrarlo en carro de triunfo, lentamente,
con manos delirantes y coronas.