25.4.20

Um Deus com dentes

Desde que, ontem, aquela mulher se debruçou sobre a minha boca aberta e passou a mexer num de meus sisos como um mecânico ocupado em desaparafusar a roda de um caminhão, comecei a pensar em como uma ida ao dentista é um grande empecilho à ideia de um Deus encarnado. Porque um Deus encarnado é, afinal, um Deus com dentes, e os dentes acumulam detritos, eventualmente se quebram, sofrem cáries, se inflamam, exigem ser arrancados, e isso obriga a pensar em palavras divinas pronunciadas com o auxílio de dentes que aos poucos apodrecem. Decerto foi para impedir a oportunidade de pensar-se em Deus de boca aberta na cadeira de um dentista que os Evangelhos pulam dos primeiros anos da vida de Cristo logo para os últimos, já que até nos é possível cogitar um Deus transcendente que assume um corpo, mas não tanto lidar depois com o corpo desse Deus sendo corpo. Conseguimos imaginá-lo nascendo e sendo morto, conseguimos até imaginá-lo caminhando, falando, comendo, dormindo, chorando; muito mais difícil é imaginá-lo corpo da superfície para dentro. Porque a vida do corpo é feita de servidões muito indignas a um Deus transcendente: dores e soluções absurdas para essas dores. De modo que é possível cogitar um Deus que se encarna num corpo que cresce, não tanto num corpo que decai e vai perdendo partes; um Deus que se encarna para a salvação do mundo e a consuma antes da necessidade de extrair um dente; um Deus, portanto, que morre cedo, jovem, e ressuscita na plenitude agora permanente desse corpo. E, de fato, como tomar sobre si as dores do mundo, e depois reinar sobre ele eternamente, a não ser com sisos bem saudáveis?